segunda-feira, 4 de fevereiro de 2019

DORIAN GRAY CALDAS por LUIZ C. GUIMARÃES




O percurso poético de Dorian Gray Caldas assinala, desde sua estreia com Os Instrumentos do Sonho (1961), uma fervorosa fidelidade à poesia, numa vocação que vem se manifestando na multiplicidade da sua arte. O poeta de totalidades maduras, a partir do primeiro livro, imprimiu uma aura de romantismo a alguns poemas, dando ênfase a temas como o amor e a solidão, talvez como eco da leitura de Charles Morgan, o autor inglês que à época líamos com o embevecimento que tocava mais o coração do que a mente.

A cada ano, quase sem interrupção, Dorian Gray publicava um novo volume, sem prejuízo da sua avassaladora atividade como pintor, escultor e tapeceiro. Aí estão Presença e Poesia (1964), Campo Memória (1966), Os Signos e Seu Ângulo de Pedra (1976), Poemas para Natal em Festa (1984), Cantar de Amigos (1992) e, agora, Os Dias Lentos (2000). Ao lado de sua poética, publicou uma dezena de outros sobre arte.
Para muitos reside na pintura a marca fulgurante de sua arte, no entanto a poesia está num mesmo plano de grandeza. Um e outro se entrelaçam, destacando-se que a poesia está presente na pintura como a pintura na poesia. Acentue-se, até, que embora sua poesia brote da emoção e do sentimento, em alguns de seus poemas existe uma dosagem impressionante de imagens plásticas e visuais.

De matizes clássicas, nunca o seduziu o apelo dos experimentalismos e vanguardas. Severa e serena, a poesia de Dorian Gray Caldas se transfigura de emoção. Nos momentos em que poderia ceder a arroubos, controla o ímpeto e fica à margem da exaltação, na suavidade da linguagem de seu verso elegante e contido.

O poeta diz alguma coisa sobre alguma coisa: navega na superfície ou mergulha nas profundezas: é canto raso ou de revelação: nomeia, evoca/invoca, oferta, resgata e descobre. Sem desfalecimento ou pausas, quando muito admite um breve compasso de espera para recomeçar. A poesia convive com todos os temas no patamar das nuvens no teto do horizonte, praia à margem doa abismos, ou engorda correntezas em busca do mar.

A poesia é celebração: na arquitetura do verso, a palavra é seu sangue, sua respiração, sua razão de ser. Fala pelo verso legível ou obscuro, retesado como arco na hora do arremesso da flecha, ou vacilante como a língua da vela sacudidas pela brisa; parte ou se cala; tem vida longa ou breve; para no meio do atalho que o tempo destrói, ou permanece como estrada principal.

O referencial poético de Dorian Gray assume todos esse estágios. A sua estrada é a principal e neste Os Dias Lentos, o mais recente e amadurecido de seus livros, completa o círculo da celebração. De livro para livro afinou sua voz numa linguagem de clareza e transparência. Criou um timbre pessoal que explora os mais variados temas, com caloroso lirismo. Seu temário inclui questionamentos, da vida e de sua arte, o passado e o presente, o gosto do elegíaco, a reflexão do contemplativo, a memória do chão de nascença de suas inseparáveis raízes nordestinas, o amor e a solidão – doação e testemunho da beleza, a justificar Jorge Guillén – “La poesia es eso: um mundo profundamente acompanhado de uma alma”.


DA CRIAÇÃO

Se escrevo uma palavra,
Ponho a vida acordada.
As linhas da escrita vão nascendo
do milagre. A paisagem vai fiando
as árvores e os ramos verdes;
qualquer coisa estremece no sono
onde crescem por si mesmos
os seus cabelos. O vinho transborda
da taça. Dormes nua nos espelhos.
A cal das velhas casas ressuscita
Lembranças. Um pássaro em minhas mãos
Sonha distâncias atlânticas. A poesia
Abre no meu coração um ramo negro
Com uma flor de sangue.
Se escrevo a primeira palavra
Ou se  nem sequer a escrevo, a dor
Me ensina o disfarce. Corto
a laranja em quatro fatias
de ouro. Espero o estranho para o almoço.
No poço dos meus olhos fatigados
Há um erro de cálculo; a morte
Chegou tarde ao encontro.
Dorme no meu sangue o som
dos violinos.
Mais uma vez escrevo
e mais uma vez destruo as lembranças.


FALAR DE POESIA

A poesia cai na alma
Como uma gota de veneno.
A poesia cala a minha boca.
Abre suas asas de água
e fica na memória perdurando.
Grandes asas hibernadas.
Pássaros nas mãos.
A poesia queima sua poeira de tempo
na concha de minhas mãos.
Cinzas de ontem.
Pedra de fechadas raízes.
Sangue de lanças antigas.
Na noite revela-me deu poder.
Eu queria como herança a ilha.
E esta janela que se abre
Ao metal do dia.
Revela-me, poesia,
Sua identidade imprevisível.


ALTAS TORRES

Conheço torres altas, montes,
Curvas dos rios, pontes.
Conheço fechadas pedras, chuva,
linha do horizonte, serras.

Conheço vôo de pássaros, ilhas,
espaços onde cresce o trigo.
Conheço o anoitecer nas vastidões
desses crepúsculos brancos.

Conheço o caminho, a pálpebra de sono
da água que te vestia, teus olhos escuros
no amor começado, no restituído espasmo.

Conheço o equilíbrio da hora, inútil espera.
Só não conheço o outro lado da tua porta,
a única sem entrada e sem regresso.


GUIMARÃES, L.C. Dorian Gray Caldas. O Galo. Natal, Ano. XI, n.8, ago/2000, Pois é a Poesia, p.29









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