sexta-feira, 7 de outubro de 2016

A MURALHA E OS LIVROS







Os livros, papiros, pergaminhos, escritos do passado são testemunhos da memória coletiva e, como tal, de uso comum, patrimônio cultural da humanidade. A sua supressão deve ser julgada como crime contra a humanidade.

Muro, na realidade ou na ficção literária, é isolamento, separação, desmembramento, sugere desavença, serve à morte, lembra o triunfo da morte.

Jorge Luís Borges nos conta, com o título deste artigo, a história do imperador (Qin) Shi Huangti que, em 220 a.C. mandou construir a Muralha da China e queimar todos os livros que existiam antes do seu governo. O baluarte era apenas uma demonstração de poder, desnecessário porque a China não tinha então inimigos poderosos. A lembrança do texto borgeano veio da declaração feita pelo candidato republicano à Presidência dos EUA, segundo o qual, se eleito, irá mandar fazer um muro na fronteira com o México. A linha fronteiriça, de San Diego a Brownsville, mede 3.141 quilômetros. A nova muralha atravessaria altitudes e depressões, rios e desertos.

Parece que o magnata ilusionista e autoiludido quer o isolamento, o império americano, visualizado com o país vizinho. Sentir-se-ia ele capaz de, em tudo, imitar o imperador chinês? A tendência da globalização não são as construções digitais? À época, a Grande Muralha tinha cerca de 3 mil quilômetros. Hoje é atração turística, continua a não servir de defesa.

Dois muros deixaram triste memória no século vinte El Paredón cubano, onde foram fuzilados milhares de adversários políticos, mais famoso ainda é o Muro de Berlin. A União Soviética desejava impedir evasão para o mundo capitalista. Nas tentativas de fuga, centenas de mortos e feridos, mas valeu para a conquista da liberdade. O “Muro da Vergonha” durou 28 anos até ser destruído em 1983.

Potiguares, temos também lembranças desse muro. Fizemos pequeno curso de administração em Berlim e quisemos conhecer o outro lado. Mesmo em rápida visita, lá pude notar o ar severo e contraído das pessoas, comparadas à descontração e bom humor dos outros alemães. Na volta tivemos dois episódios de tensão: sisudez e gentileza. O ônibus de turistas fica detido entre a barreira de alvenaria e a cerca de arame farpado. Cães pastores amestrados farejam. Guardas com eloquentes metralhadoras sobem ao veículo. Um dos militares, branquíssimo, examina os passaportes, confere dados, a cara com o retrato. Um vizinho, nordestino, vasculha os bolsos e demora a encontrar o documento. O guarda, impaciente, fala alto, rascante, gesticula. Fazendo graça, o pernambucano responde: “calma chupareia! Calminha aí, chupareia!”. De medo, engoli o sorriso, enquanto era feita a identificação.

Na volta à Berlim sitiada, o meu amigo Genibaldo Barros angustiou-se: havia perdido o passaporte. O ônibus ficou parado na fronteira pela solidariedade dos companheiros de viagem, menos um que exigia a imediata liberação. A aflição aumentando, de súbito, chega correndo uma moto e um gentil guarda devolve a identidade encontrada. Alívio e aplausos.

Em Berlim, restava a lembrança de que os líderes nazistas fizeram fogueiras de livros. Borges ironiza: “Queimar livros e erigir fortificações é tarefa comum dos príncipes” e, referindo-se ao antigo império: “Talvez a muralha fosse uma metáfora...” uma obra tão torpe e tão inútil.

O último republicano presidente dos EUA, George W. Bush, inventou uma guerra contra o Iraque por imaginar que o ditador Sadan Hussein poderia chegar a ter bombas atômicas. Como todas elas, a guerra foi uma tragédia que continua. No plano cultural, a Unesco comprovou que a Biblioteca Nacional de Bagdá sofreu destruidores ataques de bomba e mísseis, tablita das vitrines desapareceram.

A inquisição, em nome de Deus, queimou livros preciosos.

O Reino Unido está fazendo em Calais, na França, um muro para conter refugiados emigrantes pelo Canal da Mancha.

Consideremos, pois, a que pode levar a agressividade e a imaginação de um chefe da mais poderosa nação do planeta. Ser ou não ser, é a questão.

Vivemos o processo da quarta Revolução Industrial, caracterizada pela mobilidade e conectividade, o que indica parcerias, uma coexistência mais alta e fraterna.

Diferentes somos todos, mas também todos somos um, a raça humana, que deseja mais livros e menos muros.


 Diogenes da Cunha Lima




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