quarta-feira, 29 de julho de 2020

DESAPEGO




DESAPEGO


Sairei mundo afora dizendo adeus.
Não que eu sinta a morte próxima.
Preciso é livrar-me dos excessos.

Direi adeus à minha própria casa,
que de tão grande não me reconhece.
Incomoda-me ver tantos cômodos,
por tanto tempo, sem qualquer uso.

Adeus às estantes repletas de livros,
muitos nunca foram sequer abertos.
Trocarei todos por simples sorrisos.

Direi adeus às roupas e calçados
que sem uso tornaram-se âncoras
e do passado precisam ser içadas.

Adeus também direi às fotografias
que de nossa história perpetuam
apenas a parte que nos interessa.

Foi de uma delas, há muito tempo,
que saiu o avô que eu nunca vi.
Ele sorriu e com um terno abraço
pediu-me que não ficasse triste
e disse, antes de voltar à imobilidade,
da felicidade de ter me conhecido.

Direi adeus às cartas e bilhetes
nunca entregues a quem eu amava.
Adeus aos poemas nunca concluídos,
fantasmas presos em velhas caixas.

Direi adeus ao excesso de verbo,
palavras que escapam em sentido único
e nunca mais encontram retorno.
Melhor será acolher e ter o silêncio
como cúmplice e fiel companheiro.

Direi adeus até mesmo ao museu de mim.
Doído, para sempre fecharei suas portas
e assim não mais serei atormentado
por lembranças e cicatrizes nele expostas.

Adeus às crenças e convicções superficiais.
Sei que bem mais leve e livre serei
por dizer adeus ao que não é essencial.

Depois, diante do mar, vendo o sol se por,
acompanharei o passar de nuvens em fogo.
Nelas buscarei o desconhecido rosto de Deus.


RAIMUNDO GADELHA






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