terça-feira, 13 de dezembro de 2016

CANÇÃO PARA UMA MENINA



Kerubino Procópio, saudoso amigo, fez, em certo dia, uma revelação que me marcou muito. Conversando sobre sua filha, então com dois anos de idade, na plenitude da ternura de pai, falou: “O mais bonito não é o olhar dela: é o que ela vê”.

Uma revelação que deixa a gente meditando sobre o significado intenso dessa comovedora verdade. A beleza real, definitiva, é quase invisível. É evocação inicial da harmonia perdida do Paraíso, sentido invulgar do terno sofrimento: aquilo que a gente pressente e quase vê, mas só é captado em outra dimensão psíquica. A beleza é a bondade do coração.

É milagre incessante, que não termina revelado na constatação imediata. A grande beleza é o silêncio, múltiplo, parado, por exemplo, de um lago que nunca foi movimentado por um feixe de ventos. É a audição de astros distantes que azulescem no infinito – a voz do mistério que circula como ondas hertzianas sobre a nossa cabeça; e muitas vezes tem a claridade lancinante de um relâmpago, ou a apagada percussão de um trovão nas noites fundas de inverno. É signo, significado, significante. Ou a música das esferas em silêncio total, que tanto assombrava Kant e Pascal.

A beleza não seria o que se vê na formal certeza, mas o que se adivinha, já domado pelo olhar. É o que a filha de Kerubino, na claridade de seus dois anos, vê de dentro para fora, do seu vasto universo nascente. Não é a forma que chega – mas esta forma já modificada pelo seu sonho de criança, pela nítida impressão do mundo espiritual que, nela, grava faixas irreveladas de comovida interpretação do mundo exterior. A íris de seu olhar vê o passado, o presente e o futuro.

A menina olha as cores se movimentando no espaço puro da praia de Pirangi. Ela tem um olhar azul, circunavegando, parado, interrogativo. De repente – só ela vê isso – as cores vão se enriquecendo como nos dias iniciais da Criação, como se se abrisse no ar compartimentos estanques de arco-íris desconhecidos.

Os parentes exclamam que o olhar da menina é belo. Mas só o pai, Kerubino, é quem pressente que belo é o que ela está vendo, igual a uma mutação migratória de aves que fosse permitida por Deus; casa pássaro evoluindo em círculos leves e profundos, na direção dessa descoberta de visão que a criança liberta para o mundo trágico dos que não sabem desatar o nó da Poesia.

A beleza dói – já se disse. Mas dói em nós, os adultos, marcados pela última dimensão já atingida da vida. Na criança, a beleza é um ato extremo de liberdade. É o exercício da alvorada, que Homero, o poeta cego, viu ser construído com dedos cor-de-rosa. Com dois anos de idade, ela não só viu o milagre, mas sentiu, sem dizer, o movimento dos átomos na Beleza recomposta pela mediterrânea água do mar que, na praia de Pirangi, fragmenta-se em azuis periféricos e longínquos, latifúndios decorais, em verdes libertários e em certos tons roxos que apenas crescem ao meio-dia; e morrem quando as tardes vão se compondo com a noite, a misteriosa Noite que a cavalga os ventos que partiram em caravelas desde as Costas d’África. São cores tão únicas, que dá vontade de raspá-las à flor da água, espraiada em verões apaziguados e com essas cores fazer um grande mural, entregando-o, depois, ao museu imaginário, raríssimo. Por esta razão, sabemos que os barcos estão em segurança quando parados nos cais, mas não foi para isso que eles foram feitos.

Com dois anos de uma sensibilidade singular, é-se capaz de nomear o verdadeiro nome das coisas, acender o lume na escuridão, apontar as distâncias ocultas, conversar com anjos da guarda, seres lúdicos que gostam de brincar e sorris debaixo das sombras rendilhadas de árvores e silêncios. E recolher antigos luares, que envelheceram nas dunas misteriosas de Natal, construindo um abrigo de luares encanecidos e trêmulos, cansados e sozinhos.

Ao crescer, no contacto do mundo adulto, a filha de Kerubino terá tido – inevitavelmente -, saudade do que o Pai constatou na sua pequena infância, enfeitiçada do que é eterno e infinito. E, por isso, nunca passageiro.

Aliás, tudo que passa, permanece – disse um certo poeta de Nova Cruz, que, de vez em quando, usa sua lanterna, também ao meio-dia, na busca de suas verdades interiores. Ou se interroga, querendo saber o que o Cristo viu do alto da Cruz. E o Cristo diz: “Aproxime-se mais, Diogenes, que aos poucos vou lhe revelando...”

Por isso, carecemos de asas, já dizia Sócrates.

Sanderson Negreiros
Tribuna do Norte, 11 de dezembro de 2016




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