Kerubino Procópio, saudoso amigo, fez, em certo dia, uma revelação que
me marcou muito. Conversando sobre sua filha, então com dois anos de idade, na
plenitude da ternura de pai, falou: “O mais bonito não é o olhar dela: é o que
ela vê”.
Uma revelação que deixa a gente meditando sobre o significado intenso
dessa comovedora verdade. A beleza real, definitiva, é quase invisível. É
evocação inicial da harmonia perdida do Paraíso, sentido invulgar do terno
sofrimento: aquilo que a gente pressente e quase vê, mas só é captado em outra
dimensão psíquica. A beleza é a bondade do coração.
É milagre incessante, que não termina revelado na constatação imediata.
A grande beleza é o silêncio, múltiplo, parado, por exemplo, de um lago que
nunca foi movimentado por um feixe de ventos. É a audição de astros distantes
que azulescem no infinito – a voz do mistério que circula como ondas hertzianas
sobre a nossa cabeça; e muitas vezes tem a claridade lancinante de um
relâmpago, ou a apagada percussão de um trovão nas noites
fundas de inverno. É signo, significado, significante. Ou a música das
esferas em silêncio total, que tanto assombrava Kant e Pascal.
A beleza não seria o que se vê na formal certeza, mas o que se adivinha,
já domado pelo olhar. É o que a filha de Kerubino, na claridade de seus dois
anos, vê de dentro para fora, do seu vasto universo nascente. Não é a forma que
chega – mas esta forma já modificada pelo seu sonho de criança, pela nítida
impressão do mundo espiritual que, nela, grava faixas irreveladas de comovida
interpretação do mundo exterior. A íris de seu olhar vê o passado, o presente e
o futuro.
A menina olha as cores se movimentando no espaço puro da praia de
Pirangi. Ela tem um olhar azul, circunavegando, parado, interrogativo. De
repente – só ela vê isso – as cores vão se enriquecendo como nos dias iniciais
da Criação, como se se abrisse no ar compartimentos estanques de arco-íris
desconhecidos.
Os parentes exclamam que o olhar da menina é belo. Mas só o pai,
Kerubino, é quem pressente que belo é o que ela está vendo, igual a uma mutação
migratória de aves que fosse permitida por Deus; casa pássaro evoluindo em
círculos leves e profundos, na direção dessa descoberta de visão que a criança
liberta para o mundo trágico dos que não sabem desatar o nó da Poesia.
A beleza dói – já se disse. Mas dói em nós, os adultos, marcados pela
última dimensão já atingida da vida. Na criança, a beleza é um ato extremo de
liberdade. É o exercício da alvorada, que Homero, o poeta cego, viu ser
construído com dedos cor-de-rosa. Com dois anos de idade, ela não só viu o
milagre, mas sentiu, sem dizer, o movimento dos átomos na Beleza recomposta
pela mediterrânea água do mar que, na praia de Pirangi, fragmenta-se em azuis
periféricos e longínquos, latifúndios decorais, em verdes libertários e em
certos tons roxos que apenas crescem ao meio-dia; e morrem quando as tardes vão
se compondo com a noite, a misteriosa Noite que a cavalga os ventos que
partiram em caravelas desde as Costas d’África. São cores tão únicas, que dá
vontade de raspá-las à flor da água, espraiada em verões apaziguados e com
essas cores fazer um grande mural, entregando-o, depois, ao museu imaginário,
raríssimo. Por esta razão, sabemos que os barcos estão em segurança quando
parados nos cais, mas não foi para isso que eles foram feitos.
Com dois anos de uma sensibilidade singular, é-se capaz de nomear o verdadeiro nome das coisas, acender o lume na escuridão, apontar as distâncias ocultas, conversar com anjos da guarda, seres lúdicos que gostam de brincar e sorris debaixo das sombras rendilhadas de árvores e silêncios. E recolher antigos luares, que envelheceram nas dunas misteriosas de Natal, construindo um abrigo de luares encanecidos e trêmulos, cansados e sozinhos.
Com dois anos de uma sensibilidade singular, é-se capaz de nomear o verdadeiro nome das coisas, acender o lume na escuridão, apontar as distâncias ocultas, conversar com anjos da guarda, seres lúdicos que gostam de brincar e sorris debaixo das sombras rendilhadas de árvores e silêncios. E recolher antigos luares, que envelheceram nas dunas misteriosas de Natal, construindo um abrigo de luares encanecidos e trêmulos, cansados e sozinhos.
Ao crescer, no contacto do mundo adulto, a filha de Kerubino terá tido –
inevitavelmente -, saudade do que o Pai constatou na sua pequena infância,
enfeitiçada do que é eterno e infinito. E, por isso, nunca passageiro.
Aliás, tudo que passa, permanece – disse um certo poeta de Nova Cruz,
que, de vez em quando, usa sua lanterna, também ao meio-dia, na busca de suas
verdades interiores. Ou se interroga, querendo saber o que o Cristo viu do alto
da Cruz. E o Cristo diz: “Aproxime-se mais, Diogenes, que aos poucos vou lhe
revelando...”
Por isso, carecemos de asas, já dizia Sócrates.
Sanderson Negreiros
Tribuna do Norte, 11 de dezembro de 2016
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