terça-feira, 8 de novembro de 2016

A IMORTALIDADE ATUAL





A tatuagem digital é permanente. A corporal, óbvio, tem a vida do corpo. Hoje, três vezes mais que a humanidade, 20 bilhões de rostos estão gravados eletronicamente. No passado, heróis, entre os vencedores, e santos, entre os bons, poderiam se tornar célebres. Na vertigem do nosso tempo, qualquer um pode ter sua imagem fixada em memória digital. A qualquer momento, alguém pode virar celebridade e ter os seus 15 minutos de fama.

A tecnologia eletrônica de ponta, quarta Revolução Industrial, está produzindo uma transformação do pensamento e do comportamento humano.

A tatuagem imortal é tema central de palestra na Universidade da Califórnia, em San Diego, do professor Juan Henriquez. A nova tatuagem poderá ser vista em movimento e apreciada pelas futuras gerações.

O professor, futurista, deixa aos seus ouvintes participantes a escolha do fato ser um bem ou um mal social. Uma das razões: a privacidade, tão apregoada como direito de todos, passou a ser privilégio de poucos. Para reflexão e em abono à sua tese, o mestre californiano invoca a mitologia grega, Sísifo, Narciso, Orfeu e Eurídice.

A tatoo é criação milenar, afirma arqueólogos. A pele, fronteira do corpo, maior dos órgãos humanos, serve de tela (literalmente, a tela subcutânea), que é trabalhada com pinturas, desenhos, mensagens.

A tatuagem, tanto como atividade empresarial quanto amadorística, tem buscado inspiração em gênios das artes plásticas para recriações na pele – são mais frequentes Leonardo da Vinci (desenho do “Homem Vitruviano”, a “Mona Lisa”, a “Ceia Larga”), surreal de Salvador Dali e de Picasso, os girassóis de Van Gogh, a angústia do “Grito” de Munch, a múltipla Frida Kahlo.

Arte na pele tem despertado cultores e potentes oposições. Entre os mandamentos que Deus deu a Moisés está: “Não dareis golpe no vosso corpo; nem fareis marca alguma sobre vós” (Levítico, 19:28).

O papa Adriano, que governou o mundo cristão entre 779 e 795, ainda que protetor das artes, proibiu que se fizesse qualquer sinal no corpo humano.

O governo inglês, em 879, mandou tatuar os criminosos para identificá-los. Apesar de todas as negações normativas, de interpretações, preconceitos, a tattoo resiste e, por vezes, é exaltada. Um exemplo atual é a exposição chamada “Skin and Ink”, de Los Angeles, que mereceu aplausos de incontáveis visitantes.

Como advogado, tive uma experiência singular. O filho de um amigo muito querido tinha sido preterido de entrar para a nossa polícia militar, porque o edital do concurso vedava tatuagem aos candidatos. Argumentei que o corpo é o que de mais seu a pessoa tem. É o uso personalíssimo, ademais, o militar só está em função quando estiver fardado. A tatuagem do candidato era no braço, sob a farda ninguém poderia vê-la. Pedi estudo a um estagiário-filósofo inteligentíssimo. Dei parecer de quatorze laudas que convenceu o Comandante e outros militares responsáveis. Alegria do êxito. 

Agora, o Supremo Tribunal Federal decidiu igualmente para um soldado de São Paulo.

As estrelas atuais não são apenas os gênios, os portadores de talento superior. Qualquer pessoa, a mais comum e cotidiana, pode virar celebridade instantânea. A humanidade vive a sua quarta Revolução Industrial, época da conectividade. Um rosto, o gestual, um episódio banal pode ser acessado por milhares ou milhões de internautas. Um bem bolado gesto serve de exemplo: os jovens norte-americanos costumam cumprimentarem-se com o “high five”. As mãos espalmadas se tocam no alto. É representação de parceria, amizade, estamos bem. Um deles faz selfie auto-cumprimentando-se: foi festejado por muitos milhares de pessoas.

Aos mitos da Grécia, Juan Henriquez acrescentou um argentino, o escritor Jorge Luís Borges, para indagar se vale a pena a imortalidade.

Sísifo, o esperto, foi condenado por Zeus a empurrar uma enorme pedra até o alto de uma montanha, mas a pedra vem sempre abaixo, obrigando a um novo e inútil esforço.

Narciso, contemplando sua bela imagem, reflexo nas águas, apaixona-se por si mesmo.

Orfeu, o poeta músico, que encantava seres humanos, pássaros, árvores, animais selvagens, vai buscar Eurídice, sua amada morta no inferno, Hades. Consegue, mas a condição é de não ficarem juntos logo. A espera desespera Orfeu. Ele é devorado.

A imortalidade on line não teria estes componentes mitológicos, não seria lição?

Jorge Luís Borges afirmava que queria ser esquecido completamente após a sua morte. Em entrevista declarou “todos, afinal de contas, seremos esquecidos, o que aliás é melhor”.

Após publicação de seus artigos combatendo a ditadura argentina, foi ameaçado de aniquilamento. Borges respondeu aos militares: “o que mais vocês podem me ameaçar senão com a morte?”

Sinto que a vida é um presente de Deus, como tal, devemos agradecer, preservando-a, pensando e agindo bem, vivendo intensamente, comovidamente. Parodiando Fernando Pessoa: “Tudo vale a pena porque a alma não é pequena”. E é imortal.



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