A tatuagem digital é
permanente. A corporal, óbvio, tem a vida do corpo. Hoje, três vezes mais que a
humanidade, 20 bilhões de rostos estão gravados eletronicamente. No passado,
heróis, entre os vencedores, e santos, entre os bons, poderiam se tornar célebres.
Na vertigem do nosso tempo, qualquer um pode ter sua imagem fixada em memória
digital. A qualquer momento, alguém pode virar celebridade e ter os seus 15
minutos de fama.
A tecnologia eletrônica de ponta, quarta Revolução Industrial, está produzindo
uma transformação do pensamento e do comportamento humano.
A tatuagem imortal é tema central de palestra na Universidade da Califórnia, em
San Diego, do professor Juan Henriquez. A nova tatuagem poderá ser vista em
movimento e apreciada pelas futuras gerações.
O professor, futurista, deixa aos seus ouvintes participantes a escolha do fato
ser um bem ou um mal social. Uma das razões: a privacidade, tão apregoada como
direito de todos, passou a ser privilégio de poucos. Para reflexão e em abono à
sua tese, o mestre californiano invoca a mitologia grega, Sísifo, Narciso,
Orfeu e Eurídice.
A tatoo é criação milenar, afirma arqueólogos.
A pele, fronteira do corpo, maior dos órgãos humanos, serve de tela (literalmente, a tela subcutânea), que é trabalhada com
pinturas, desenhos, mensagens.
A tatuagem, tanto como atividade empresarial quanto amadorística, tem buscado
inspiração em gênios das artes plásticas para recriações na pele – são mais
frequentes Leonardo da Vinci (desenho do “Homem Vitruviano”, a “Mona Lisa”, a
“Ceia Larga”), surreal de Salvador Dali e de Picasso, os girassóis de Van Gogh,
a angústia do “Grito” de Munch, a múltipla Frida Kahlo.
Arte na pele tem despertado cultores e potentes oposições. Entre os mandamentos
que Deus deu a Moisés está: “Não dareis golpe no vosso corpo; nem fareis marca
alguma sobre vós” (Levítico, 19:28).
O papa Adriano, que governou o mundo cristão entre 779 e 795, ainda que
protetor das artes, proibiu que se fizesse qualquer sinal no corpo humano.
O governo inglês, em 879, mandou tatuar os criminosos para identificá-los.
Apesar de todas as negações normativas, de interpretações, preconceitos, a tattoo resiste e, por vezes, é exaltada. Um
exemplo atual é a exposição chamada “Skin and Ink”, de Los Angeles, que mereceu
aplausos de incontáveis visitantes.
Como advogado, tive uma experiência singular. O filho de um amigo muito querido
tinha sido preterido de entrar para a nossa polícia militar, porque o edital do
concurso vedava tatuagem aos candidatos. Argumentei que o corpo é o que de mais
seu a pessoa tem. É o uso personalíssimo, ademais, o militar só está em função
quando estiver fardado. A tatuagem do candidato era no braço, sob a farda
ninguém poderia vê-la. Pedi estudo a um estagiário-filósofo inteligentíssimo.
Dei parecer de quatorze laudas que convenceu o Comandante e outros militares
responsáveis. Alegria do êxito.
Agora, o Supremo Tribunal Federal decidiu igualmente para um soldado de São
Paulo.
As estrelas atuais não são apenas os gênios, os
portadores de talento superior. Qualquer pessoa, a mais comum e cotidiana, pode
virar celebridade instantânea. A humanidade vive a sua quarta Revolução
Industrial, época da conectividade. Um rosto, o gestual, um episódio banal pode
ser acessado por milhares ou milhões de internautas. Um bem bolado gesto serve
de exemplo: os jovens norte-americanos costumam cumprimentarem-se com o “high
five”. As mãos espalmadas se tocam no alto. É representação de parceria,
amizade, estamos bem. Um deles faz selfie auto-cumprimentando-se: foi festejado
por muitos milhares de pessoas.
Aos mitos da Grécia, Juan Henriquez acrescentou um argentino, o escritor Jorge
Luís Borges, para indagar se vale a pena a imortalidade.
Sísifo, o esperto, foi condenado por Zeus a empurrar uma enorme pedra até o
alto de uma montanha, mas a pedra vem sempre abaixo, obrigando a um novo e
inútil esforço.
Narciso, contemplando sua bela imagem, reflexo nas águas, apaixona-se por si
mesmo.
Orfeu, o poeta músico, que encantava seres humanos, pássaros, árvores, animais
selvagens, vai buscar Eurídice, sua amada morta no inferno, Hades. Consegue, mas a condição é de não ficarem juntos logo. A espera desespera
Orfeu. Ele é devorado.
A imortalidade on line não teria estes
componentes mitológicos, não seria lição?
Jorge Luís Borges afirmava que queria ser esquecido completamente após a sua
morte. Em entrevista declarou “todos, afinal de contas, seremos esquecidos, o
que aliás é melhor”.
Após publicação de seus
artigos combatendo a ditadura argentina, foi ameaçado de aniquilamento. Borges
respondeu aos militares: “o que mais vocês podem me ameaçar senão com a morte?”
Sinto que a vida é um
presente de Deus, como tal, devemos agradecer, preservando-a, pensando e agindo
bem, vivendo intensamente, comovidamente. Parodiando Fernando Pessoa: “Tudo
vale a pena porque a alma não é pequena”. E é imortal.
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