manuel bandeira |
Humberto Werneck, O Estado de S. Paulo
16 de julho de 2019
No mundo da literatura, o mais sensacional nem sempre
está nas páginas do livro. Nas histórias que aqui vão, bons autores revelam-se
também bons personagens
Difícil, hoje, imaginar Carlos Drummond de Andrade e
Sérgio Buarque de Holanda, dois gigantes das letras nacionais, envolvidos numa
troca de sopapos. Pois foi o que aconteceu, não se sabe ao certo se nos últimos
dias de 1934 ou nos primeiros de 35. O cenário do entrevero: o prédio onde hoje
funciona a Câmara Municipal do Rio de Janeiro, na Cinelândia, que abrigava
então o Ministério da Educação e Saúde Pública.
O ministro era Gustavo Capanema, e Drummond, seu chefe de
gabinete, por ele trazido de Belo Horizonte em meados de 1934. O poeta, aos 32
anos, já era casado com Dolores e pai de Maria Julieta. Tinha dois livros
publicados, Alguma Poesia, de 1930, e Brejo das Almas, de 1934.
Sérgio Buarque, da mesma idade, era jornalista e estava a
meses de conhecer Maria Amélia Alvim, com quem se casaria em 1936 – ano,
também, de sua estreia nas livrarias, com aquela que ficaria sendo a sua obra
mais conhecida e celebrada, Raízes do Brasil.
Solteiro, já deitara raízes de outra natureza: era pai de
um filho que jamais chegaria a conhecer, gerado nos anos em que viveu em
Berlim, Sergio Ernst, o “irmão alemão” em torno do qual se passará o romance
homônimo de Chico Buarque.
Sem serem íntimos, proximidade que o temperamento
reservado do poeta não facilitaria, Sérgio e Carlos eram amigos – camaradagem que
o supracitado entrevero viria turvar por algum tempo. Motivo do bafafá: uma
namorada de Sérgio, que trabalhava no ministério, e para a qual o chefe de
gabinete teria arrastado a asa.
“A última do Sérgio”, contou Manuel Bandeira, amigo de
ambos, a Gilberto Freyre, numa carta de 17 de janeiro de 1935: “A namorada
(irmã da Germaninha) foi requisitada para trabalhar no Ministério da Educação.
O Carlos Drummond engraçou-se com ela, uma coisa à toa, e o nosso Sérgio entrou
pelo gabinete um belo dia e atracou-se com o Carlos. Acudiu o pessoal, o
Peregrino levou uma sobra na cara, e o Sérgio gritava indignado para o Carlos:
‘Seu poetinha de merda!’”.
A Germaninha citada por Bandeira era a cantora Germana
Bittencourt, falecida em 1931, e o camarada para quem sobrou tabefe, o escritor
Peregrino Júnior, futuro membro da Academia Brasileira de Letras.
A maior vítima da cena de pugilato poderiam ter sido os
óculos de Sérgio Buarque de Holanda, que no empurra-empurra lhe saltaram do
rosto. Só não foram esmigalhados porque o jornalista Prudente de Morais, neto,
amigo dos contendores, os recolheu a tempo. No dia seguinte, o chefe de
gabinete do ministro mandou entregar os óculos na casa do adversário.
Ao contrário do que se chegou a escrever, o incidente não
comprometeu a amizade de Sérgio e Drummond, restabelecida ao cabo de um período
de estranhamento. Sobre ele, Chico Buarque chegou a conversar com o poeta, numa
rememoração a que não faltaram gargalhadas. Lamentavelmente, talvez já não se
possa saber quem era a moça pela qual Sérgio e Carlos se engalfinharam.
Talvez Ruth, a mais nova das irmãs de Germaninha, a quem
Bandeira, em outro escrito, se refere carinhosamente, e que veio a se casar com
um futuro brigadeiro, o qual, como o J. Pinto Fernandes do poema de Drummond,
não tinha entrado na história.
Tão difícil quanto imaginar aquela briga, seria hoje
escalar, entre os escribas em atividade do País, uma dupla cuja estatura
literária pudesse comparar-se à de Sérgio Buarque de Holanda e de Carlos
Drummond de Andrade.
BOFETADA NO ROSTO
Outro barraco memorável, embora sem pancadaria, foi
aquele que envolveu Manuel Bandeira e um casal de amigos seus: a cantora Elsie
Houston, meio brasileira, meio americana, e seu marido, o poeta surrealista
francês Benjamin Péret. Quando Elsie se matou em Nova York, em 1943, Bandeira
escreveu pequeno e comovido registro no qual menciona uma briga que os separou
por anos. A moça, conta, “uma vez, na minha casinha de Santa Teresa, teve um
gesto cujo realismo sacrílego encheu-me de revolta e levou-me a cortar relações
com o casal”.
Que sacrilégio teria sido aquele? Bandeira, discreto,
preferiu não dizer, mas outro relato, do poeta Murilo Mendes, permitirá fechar
a história, ao revelar, não os santos, mas o milagre: “Contaram-me que, em
pleno furor do movimento ‘modernista’, na época em que o cúmulo da inteligência
e da elegância consistia em se dizer ateu, a-religioso, anticristão etc., um
casal de modernistas em delírio (surrealistas) foi visitar Manuel Bandeira
(...). Entrando no quarto do poeta, avistaram os dois um crucifixo e ficaram
‘escandalizados’, exigindo do poeta que o atirasse fora. Bandeira indignou-se e
convidou o casal a dar o fora logo”.
Da parte de Benjamin Péret, pelo menos, não se tratou de
uma agressão isolada. O mesmo Murilo deu notícia de episódio semelhante, ainda
mais grave, num dos artigos do livro póstumo Recordações de Ismael Nery: “Em
1929 realizava-se na casa de conhecido poeta uma reunião a que comparecia todo
o mundo literário e artístico do Rio e de São Paulo. De repente surge uma
discussão sobre assuntos religiosos e um escritor surrealista francês, de
passagem pelo Rio, tipo fisicamente forte, arrogante, insulta o Cristo. Ismael
aplica-lhe uma bofetada no rosto. Produz-se uma enorme confusão. Os dois
contendores são apartados, e a reunião é dissolvida. Foi o apogeu do
modernismo”.
O objeto, de marfim, que tanto horrorizou Elsie e
Benjamin era da particular estima de Bandeira, que a ele dedicou um poema, O
Crucifixo: “(...) Hoje, em meu quarto colocado,/ ei-lo velando sobre mim./ E
quando se cumprir aquele/ instante, que tardando vai,/ de eu deixar esta vida,
quero/ morrer agarrado com ele./ Talvez me salve. Como – espero –/Minha mãe,
minha irmã, meu pai”.
Com Péret, não teve volta, mas com Elsie as mágoas
puderam se apagar no coração de Bandeira. “Um dia”, contou ele, “em plena
Avenida Rio Branco, nos encontramos tão de surpresa, o sorriso de Elsie era tão
cordial que, antes de qualquer resolução consciente de minha parte, o abraço
veio e fizemos as pazes.”
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