quarta-feira, 25 de outubro de 2017

SAUDAÇÃO DE GAUDÊNCIO TORQUATO - I PARTE





Senhoras e Senhores

Minha primeira palavra é para explicar a razão que justifica minha presença nesse evento da Academia Norte Rio-Grandense de Letras. O que me traz aqui? Por que o centro da cultura e das letras da terra potiguar abre suas portas para ouvir nesse evento dos Multiplicadores a peroração deste conterrâneo, aliás, um conterrâneo que nunca teve a felicidade de habitar a querida cidade do Natal?

Explico. Aqui estou graças ao gesto magnânimo dos componentes desta Casa, dirigida pela extraordinária figura do polivalente Diógenes da Cunha Lima, advogado, escritor, poeta, professor, consultor, intelectual de primeira linha, pessoa querida, admirada e respeitada. Com a bondade que é marca de sua personalidade, apresentou meu nome aos seus pares e estes aprovaram meu ingresso como Sócio de Honra na Academia

Integrar o quadro de figuras de alto calibre do mundo das letras e da cultura do nosso Estado, que participa desta Casa, é motivo de orgulho. Afinal, passam e passaram por aqui nomes da mais alta estirpe intelectual do país, a partir daquele que ilustra a galeria mais elevada da cultura brasileira, Luis da Câmara Cascudo, sob cuja liderança foi fundada, em 15 de novembro de 1937, a Academia Norte-Rio-Riograndense de Letras.

Poeta Diógenes, antes de cumprir a missão com que me distinguiu,  a de proferir a saudação a quatro grandes figuras do empreendedorismo potiguar, os empresários João Claudino Fernandes, Marcelo Alecrim, Pedro Alcântara Rego de Lima e Flávio Rocha, permita-me pinçar breves passagens de sua produção intelectual. Como você teve a feliz ideia de nomear os quatro homenageados da noite, cometi a ousadia de inseri-lo no rol das homenagens. 

Desculpe-me, portanto, por esta rápida curva na linha do nosso acerto.

Começo com a lembrança de sua afamada verve, presidente. Sempre com uma novidade para contar, cheio de boas e risíveis histórias, você é o centro das atenções em uma boa conversa de grupo. Irradia imensa  bondade, que se expressa em comportamentos e gestos. Bondade assim descrita por você: “Se não vencer a bondade, o que podemos fazer?” Agradeço, portanto, a generosidade com que propôs meu nome ao crivo dos integrantes desta Casa. Generosidade com que você me eleva, até, à condição de natalense. Não é o que prega em seu livro, Natal, Uma Nova Biografia? Lá está escrito: “quem ama Natal é natalense. Todo potiguar considera-se natalense, mesmo nascendo em Passa e Fica, Caiçara do Rio dos Ventos, Jardim do Seridó ou Timbaúba dos Batistas”. Assim seja. Nascidos na serra de Luis Gomes podem, portanto, se considerar natalenses.  

Passo a fazer agora um pequeno exercício de juntar consoantes e vogais, o esqueleto e a carne das palavras, como diz Schopenhauer em seu livro A Arte de Escrever, para lembrar um pouco sua obra, poeta. Tomo a liberdade de correr por retas e curvas de sua poesia, sugerindo, inicialmente, um encontro seu com Ricardo Eliécer Neftalí Reyes Basoalto, ou, como era chamado, Pablo Neruda, aqui em Natal. (Vale lembrar que o poeta já passara pelo Brasil, primeiramente em 1945, quando participou de uma homenagem a Carlos Prestes.

Foi brindado por nosso Carlos Drummond de Andrade com estes versos em seu poema-manifesto em "Consideração do Poema", que abre o livro "A Rosa do Povo", de 1945: "Estes poetas são meus. De todo orgulho,/ de toda a precisão se incorporaram/ ao fatal meu lado esquerdo. Furto a Vinicius/ sua mais límpida elegia. Bebo em Murilo. Que Neruda me dê sua gravata chamejante/ Me perco em Apollinaire. Adeus, Maiakovski...". No Brasil, era amigo de Jorge Amado e do poeta Tiago de Mello.

Pois bem, imaginemos que deixando por uns dias seus barquinhos, conchas, cachimbos e garrafas, estampados nas paredes de seu paraíso na Isla Negra, Neruda passa alguns dias entre nós. Numa aprazível tarde de primavera, senta-se ao lado de Diógenes para ouvir respostas ao seu Livro de Las Preguntas, a partir de O Livro das Respostas:

Neruda: - Por qué se entristece la tierra cuando aparecen las violetas?
Diógenes: - Porque a flor só se encanta na cor da semana santa
O poeta chileno: Te hás dado cuenta que el otoño / es como una vaca amarilla?
O poeta potiguar- Percebi. Pelo leite derramado.
Neruda -Cuál es el pájaro amarillo / que llena el nido de limones?
- Diógenes -O pássaro infiel
Neruda: Si se termina el amarillo / con que vamos a hacer el pan?
Diógenes- Faremos o pão da terra. Um dia vamos ser seu pão
N -Se alejarán en el otoño / las golondrinas de la luna?,
D- No outono as andorinhas / farão ninhos inaugurais /  no outro lado da lua
N- Por qué no dar uma medalla / a la primera hoja de oro?
D- Para não haver desdouro: o dourado despreza o ouro
Que tarde de encantamento!
De onde se encontra, o poeta chileno deve estar se indagando “Por que não fui à esquina do Brasil abraçar o poeta potiguar Cunha Lima?

Essa criativa montagem de palavras dos dois poetas me faz lembrar  Palavras Andantes de Eduardo Galeano, onde encontramos aquela senhora que recortava palavras de todos os tamanhos de jornais, guardando-as em caixas. Na vermelha, guardava as palavras furiosas, na verde, as palavras amantes. Na caixa azul, as neutras. Na amarela, as tristes. E numa caixa transparente, Madga Lemonnier deixava as palavras com magia. Ás vezes, Magda abre e vira as caixas sobre a mesa para que se misturem do jeito que quiserem. Assim, elas contam o que acontece hoje e o que acontecerá amanhã.

Também os dois poetas guardam a magia das palavras em caixas transparentes. São palavras encadeadas que exprimem a beleza combinada de ritmo, cadência, musicalidade, repetição de sons, alegria e leveza. A propósito, lembro esse verso de Virgílio na Eneida, que tive de decorar, aos 14 anos, no Seminário Santa Terezinha, em Mossoró. Ouçam a cadência:
"Quadrupedante putrem sonitu quatit ungula campum"
“Das patas com o bater em pó desfeito
Soa o chão com o tropel de quadrúpedes."
(A fonética do verso nos remete ao tropel dos cavalos correndo sobre um  chão pontilhado de pedrinhas).
Coisas que só encanto da poesia oferece.

Diógenes guarda fina sensibilidade para captar histórias, frases, passagens e climas. Pinço esse traço em “Câmara Cascudo, um Brasileiro Feliz”. Livro de memórias, escrito com alma e precisão. Que também me faz recordar a leveza da escrita, leveza que foi objeto de uma das Conferências que Ítalo Calvino preparou para fazer fez na Universidade Harvard, EUA, e que não pode fazê-lo por morrer antes da viagem. O texto está em Seis Propostas para o Próximo Milênio, magnífico e premiado livro.

Leveza que seleciona palavras adequadas, em ritmo que flui harmoniosamente entre si, estabelecendo um diferencial que  conquista o leitor, permitindo que este viva a sensação de suavidade que está sendo descrita.
Leveza que se apresenta nesses pedaços de versos
...e o céu envelopando sua queda num azul frágil
.... Afagava-a devagar, mas com a urgência de estilhaços
... A noite está fria e tiritam, azuis, os astros à distância
....Estava como que transpassado de vazios
... Para que tu me adivinhes,
entre os ventos taciturnos,
apago meus pensamentos,
ponho vestidos noturnos.

Vejamos Diógenes captando a alma de Cascudo nesse testemunho:

- Num lugar inóspito, desabitado e estéril, um boi velho que puxara arado é mordido por uma jararaca. Sente que vai morrer e se arrasta até o pé da serra. Morre e é comido pelos bichos do céu e do chão. Vêm formigas e os vermes. As aves de rapina defecam em torno do cadáver sementes de fruteiras distantes. Aos poucos, o lugar se torna verde, cheio de vida. O boi velho (serei eu?), envenenado, cumpriu depois da morte sua função vivificadora.

Flagrando Cascudo fazendo uma confissão cheia de graça:

- Não se assombre,  em Natal eu sou o único pecador profissional. Os outros são amadores.

Ou como mestre de engraçadas cerimônias:

Levou (Cascudo) uma garrafa de cachaça, de primeira cabeçada para Paris. Se quisessem degustar a bebida, os amigos que moravam na França deveriam fazer fila no corredor do hotel, devidamente ajoelhados. Cumprida a exigência, Cascudo serviu a cachaça em cálice.

Meio assustado, o camareiro comentou:
- Criaram uma nova religião. E o seu bispo, muito estranho, é hóspede do hotel.
Vez ou outra, nosso escritor-poeta arremete a pena na direção do deboche, de onde retrata a alma (pecadora) de figuras do conturbado planeta político,  como aquela  que continua a atrair as massas por nossas plagas:

- Não posso fazer pantim
Sou limpo, imaculado,
Eu nunca estou em pecado
Tal candidato, em latim




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