Senhoras e Senhores
Minha primeira palavra é para
explicar a razão que justifica minha presença nesse evento da Academia Norte
Rio-Grandense de Letras. O que me traz aqui? Por que o centro da cultura e das
letras da terra potiguar abre suas portas para ouvir nesse evento dos Multiplicadores
a peroração deste conterrâneo, aliás, um conterrâneo que nunca teve a
felicidade de habitar a querida cidade do Natal?
Explico. Aqui estou graças ao
gesto magnânimo dos componentes desta Casa, dirigida pela extraordinária figura
do polivalente Diógenes da Cunha Lima, advogado, escritor, poeta, professor,
consultor, intelectual de primeira linha, pessoa querida, admirada e
respeitada. Com a bondade que é marca de sua personalidade, apresentou meu nome
aos seus pares e estes aprovaram meu ingresso como Sócio de Honra na Academia
Integrar o quadro de figuras
de alto calibre do mundo das letras e da cultura do nosso Estado, que participa
desta Casa, é motivo de orgulho. Afinal, passam e passaram por aqui nomes da
mais alta estirpe intelectual do país, a partir daquele que ilustra a galeria
mais elevada da cultura brasileira, Luis da Câmara Cascudo, sob cuja liderança
foi fundada, em 15 de novembro de 1937, a Academia Norte-Rio-Riograndense de
Letras.
Poeta Diógenes, antes de
cumprir a missão com que me distinguiu,
a de proferir a saudação a quatro grandes figuras do empreendedorismo
potiguar, os empresários João Claudino Fernandes, Marcelo Alecrim, Pedro
Alcântara Rego de Lima e Flávio Rocha, permita-me pinçar breves passagens de
sua produção intelectual. Como você teve a feliz ideia de nomear os quatro
homenageados da noite, cometi a ousadia de inseri-lo no rol das
homenagens.
Desculpe-me, portanto, por
esta rápida curva na linha do nosso acerto.
Começo com a lembrança de sua
afamada verve, presidente. Sempre com uma novidade para contar, cheio de boas e
risíveis histórias, você é o centro das atenções em uma boa conversa de grupo.
Irradia imensa bondade, que se expressa
em comportamentos e gestos. Bondade assim descrita por você: “Se não vencer a
bondade, o que podemos fazer?” Agradeço, portanto, a generosidade com que
propôs meu nome ao crivo dos integrantes desta Casa. Generosidade com que você
me eleva, até, à condição de natalense. Não é o que prega em seu livro, Natal,
Uma Nova Biografia? Lá está escrito: “quem ama Natal é natalense. Todo potiguar
considera-se natalense, mesmo nascendo em Passa e Fica, Caiçara do Rio dos
Ventos, Jardim do Seridó ou Timbaúba dos Batistas”. Assim seja. Nascidos na
serra de Luis Gomes podem, portanto, se considerar natalenses.
Passo a fazer agora um
pequeno exercício de juntar consoantes e vogais, o esqueleto e a carne das
palavras, como diz Schopenhauer em seu livro A Arte de Escrever, para lembrar
um pouco sua obra, poeta. Tomo a liberdade de correr por retas e curvas de sua
poesia, sugerindo, inicialmente, um encontro seu com Ricardo Eliécer Neftalí
Reyes Basoalto, ou, como era chamado, Pablo Neruda, aqui em Natal. (Vale
lembrar que o poeta já passara pelo Brasil, primeiramente em 1945, quando
participou de uma homenagem a Carlos Prestes.
Foi brindado por nosso Carlos
Drummond de Andrade com estes versos em seu poema-manifesto em
"Consideração do Poema", que abre o livro "A Rosa do Povo",
de 1945: "Estes poetas são meus. De todo orgulho,/ de toda a precisão se
incorporaram/ ao fatal meu lado esquerdo. Furto a Vinicius/ sua mais límpida
elegia. Bebo em Murilo. Que Neruda me dê sua gravata chamejante/ Me perco em
Apollinaire. Adeus, Maiakovski...". No Brasil, era amigo de Jorge Amado e
do poeta Tiago de Mello.
Pois bem, imaginemos que
deixando por uns dias seus barquinhos, conchas, cachimbos e garrafas,
estampados nas paredes de seu paraíso na Isla Negra, Neruda passa alguns dias
entre nós. Numa aprazível tarde de primavera, senta-se ao lado de Diógenes para
ouvir respostas ao seu Livro de Las Preguntas, a partir de O Livro das
Respostas:
Neruda: - Por qué se
entristece la tierra cuando aparecen las violetas?
Diógenes: - Porque a flor só
se encanta na cor da semana santa
O poeta chileno: Te hás dado
cuenta que el otoño / es como una vaca amarilla?
O poeta potiguar- Percebi.
Pelo leite derramado.
Neruda -Cuál es el pájaro
amarillo / que llena el nido de limones?
- Diógenes -O pássaro infiel
Neruda: Si se termina el
amarillo / con que vamos a hacer el pan?
Diógenes- Faremos o pão da
terra. Um dia vamos ser seu pão
N -Se alejarán en el otoño /
las golondrinas de la luna?,
D- No outono as andorinhas /
farão ninhos inaugurais / no outro lado
da lua
N- Por qué no dar uma medalla
/ a la primera hoja de oro?
D- Para não haver desdouro: o
dourado despreza o ouro
Que tarde de encantamento!
De onde se encontra, o poeta
chileno deve estar se indagando “Por que não fui à esquina do Brasil abraçar o
poeta potiguar Cunha Lima?
Essa criativa montagem de
palavras dos dois poetas me faz lembrar
Palavras Andantes de Eduardo Galeano, onde encontramos aquela senhora
que recortava palavras de todos os tamanhos de jornais, guardando-as em caixas.
Na vermelha, guardava as palavras furiosas, na verde, as palavras amantes. Na
caixa azul, as neutras. Na amarela, as tristes. E numa caixa transparente,
Madga Lemonnier deixava as palavras com magia. Ás vezes, Magda abre e vira as
caixas sobre a mesa para que se misturem do jeito que quiserem. Assim, elas
contam o que acontece hoje e o que acontecerá amanhã.
Também os dois poetas guardam
a magia das palavras em caixas transparentes. São palavras encadeadas que
exprimem a beleza combinada de ritmo, cadência, musicalidade, repetição de
sons, alegria e leveza. A propósito, lembro esse verso de Virgílio na Eneida,
que tive de decorar, aos 14 anos, no Seminário Santa Terezinha, em Mossoró.
Ouçam a cadência:
"Quadrupedante putrem
sonitu quatit ungula campum"
“Das patas com o bater em pó
desfeito
Soa o chão com o tropel de
quadrúpedes."
(A fonética do verso nos
remete ao tropel dos cavalos correndo sobre um
chão pontilhado de pedrinhas).
Coisas que só encanto da
poesia oferece.
Diógenes guarda fina
sensibilidade para captar histórias, frases, passagens e climas. Pinço esse
traço em “Câmara Cascudo, um Brasileiro Feliz”. Livro de memórias, escrito com
alma e precisão. Que também me faz recordar a leveza da escrita, leveza que foi
objeto de uma das Conferências que Ítalo Calvino preparou para fazer fez na
Universidade Harvard, EUA, e que não pode fazê-lo por morrer antes da viagem. O
texto está em Seis Propostas para o Próximo Milênio, magnífico e premiado
livro.
Leveza que seleciona palavras
adequadas, em ritmo que flui harmoniosamente entre si, estabelecendo um
diferencial que conquista o leitor,
permitindo que este viva a sensação de suavidade que está sendo descrita.
Leveza que se apresenta
nesses pedaços de versos
...e o céu envelopando sua
queda num azul frágil
.... Afagava-a devagar, mas
com a urgência de estilhaços
... A noite está fria e
tiritam, azuis, os astros à distância
....Estava como que
transpassado de vazios
... Para que tu me adivinhes,
entre os ventos taciturnos,
apago meus pensamentos,
ponho vestidos noturnos.
Vejamos Diógenes captando a
alma de Cascudo nesse testemunho:
- Num lugar inóspito, desabitado
e estéril, um boi velho que puxara arado é mordido por uma jararaca. Sente que
vai morrer e se arrasta até o pé da serra. Morre e é comido pelos bichos do céu
e do chão. Vêm formigas e os vermes. As aves de rapina defecam em torno do
cadáver sementes de fruteiras distantes. Aos poucos, o lugar se torna verde,
cheio de vida. O boi velho (serei eu?), envenenado, cumpriu depois da morte sua
função vivificadora.
Flagrando Cascudo fazendo uma
confissão cheia de graça:
- Não se assombre, em Natal eu sou o único pecador profissional.
Os outros são amadores.
Ou como mestre de engraçadas
cerimônias:
Levou (Cascudo) uma garrafa
de cachaça, de primeira cabeçada para Paris. Se quisessem degustar a bebida, os
amigos que moravam na França deveriam fazer fila no corredor do hotel,
devidamente ajoelhados. Cumprida a exigência, Cascudo serviu a cachaça em cálice.
Meio assustado, o camareiro
comentou:
- Criaram uma nova religião.
E o seu bispo, muito estranho, é hóspede do hotel.
Vez ou outra, nosso
escritor-poeta arremete a pena na direção do deboche, de onde retrata a alma
(pecadora) de figuras do conturbado planeta político, como aquela
que continua a atrair as massas por nossas plagas:
- Não posso fazer pantim
Sou limpo, imaculado,
Eu nunca estou em pecado
Tal candidato, em latim
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