Nesses tempos em que
todos nós nos sentimos inseguros, Rafa, meu auxiliar no escritório, teve sua
casa na Cidade Satélite assaltada. Levaram tudo. A mulher dele ainda chora. Com
a voz embargada, ele demonstrou a tristeza principalmente porque levaram as
suas preciosidades: a craúna,
apelidada de Preta; o concriz Pixilinga, que comia na sua mão; e o azulão.
Nenhum era imitador de outros pássaros, de músicas ou ruídos, como seus pares
fazem. Segundo ele, cantavam “no original” (ou seja, o natural canto de cada
um).
Procurei consolá-lo
dizendo que poderia ser obra de um bom ladrão, que iria devolver os pássaros à
floresta, sairiam do cativeiro, iriam voar em liberdade. Soou falso o consolo, então
adverti, como advogado, que ele se livrara de ir para a cadeia. Das sanções
penais por atividade lesiva ao meio ambiente (Lei 9.605/98). Iria cumprir pena
de detenção de 6 meses a 1 ano, e seria ainda multado. O juiz não poderia
perdoar porque o azulão e a craúna são pássaros ameaçados de extinção.
O poeta Manoel de
Barros ensina que “os pássaros conduzem os homens para o azul, para as águas,
para as árvores e para o amor”. E acrescenta, “ser escolhida por um pássaro
para ser a árvore dele: eis o orgulho de uma árvore”. Em Natal, o Parque da
Cidade Dom Nivaldo Monte e o Parque das Dunas seguem o ensinamento. Quando eu
morava no Morro Branco, o grande quintal da casa vivia cheio de pássaros porque
tinha muitas árvores frutíferas: oiti, cajá, caju; manga-espada, manga-rosa e
bacuri; pitomba e graviola; limão e sapoti. Havia um cajueiro que produzia
amarelos frutos, de sabor único. Ao seu lado, cimentei o chão para um self service de passarinhos, acrescentando
água filtrada, ração, castanhas e alpiste. Acredito que os passarinhos chamavam
uns aos outros, pela quantidade cada vez maior de espécies que pousavam no
cajueiro.
O escritor Nilo
Pereira, pernambucano de Ceará Mirim, toda carta que me escrevia, concluía
dizendo: “um abraço no cajueiro”. O poeta Luís Carlos Guimarães escreveu um
poema que ele dizia interminável, ia aumentando passarinhos cada vez mais até
ser publicado, dedicado a Moema e a mim, no seu livro “Ponto de Fuga”: Este
cajueiro plantado / no chão da areia fina / é casa de passarinho: / (...) / que
bicam o mel da canção / na polpa dos gordos cajus, / para anunciar o novo dia /
na janela da madrugada.
Neste grande terreno,
criei outras aves: guinés, marrecos-de-Pequim e até mesmo uma gaivota chamada
Dona Fernanda (homenagem distante a “Fernão Capelo Gaivota”). Encontrei-a no
Canto do Mangue. O pescador me vendeu mais barato porque tinha uma asa
quebrada. Moema desejou adotá-la. Providenciei imobilização da asa, que não
funcionou, a fratura estava consolidada. Dona Fernanda tomou conta da casa e da
piscina. Não queria comer os peixinhos que eu lhe oferecia. Colocava na beira
da piscina, empurrava para dentro d’água e ia “pescar”. Minhas filhas
reclamavam da “proprietária” da piscina, a gaivota. Ela também entrava em casa
e fazia as necessidades em qualquer lugar. Era dona do pedaço. Terminei
levando-a para S. Miguel do Gostoso. Dei de presente para o pescador Vicentinho.
Dona Fernanda passou a alegrar uma pousada onde ele trabalhava e seu retrato
enfeita a casa de Pirangi.
Viver é conviver,
ensina o poeta amazônico Thiago de Mello. Devemos conviver com os pássaros, mas
admirá-los soltos, em liberdade, sem gaiola ou qualquer forma de captura.
Afinal de contas, os pássaros todo dia nos ensinam a apreciar a liberdade.
DCL
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