Um dia, já faz muito tempo, mais de 40 anos, Jorge Amado, que acabara de me conhecer, dedicou-me uma página: “Eu te darei um pente pra te pentear/colar para teus ombros enfeitar/rede pra te embalar/o céu e o mar eu vou te dar...” Canto de amor ou canto de sereia? Preferi acreditar nas juras e nunca me arrependi.
A promessa do jovem poeta foi cumprida: pente pra me pentear, colar nos ombros a me enfeitar, rede a me embalar, o céu, o mar e muito mais: deu-me dois filhos maravilhosos, deu-me a ventura de estar a seu lado ao criar seus romances, deu-me estímulo para que eu escrevesse meu primeiro livro, acreditou em mim. Ensinou-me a amar a Bahia. Deu-me aulas de humanidade com exemplos de desprendimento, modéstia, orgulho e coragem.
Jorge tomou de minha mão e levou-me a conhecer o mundo. Atravessamos fronteiras, descortinamos horizontes, singramos mares encapelados, quase tragados em noite de tormenta por um tufão no Mar Báltico: embalados em noites mornas pelas mansas águas do Caribe. Voamos alto, quase ao infinito. Invadimos céus de estranhas constelações, sobrevoamos cordilheiras e vulcões, atravessamos a densa Floresta Amazônica. Que susto nos pregou o aviãozinho soviético no pouso forçado em pleno inverno da Sibéria!
E a outra aterrissagem de emergência, em meio ao sufocante deserto de Karakun? Redemoinhos de areias escaldantes, levantadas pela fúria do vento, a queimar nossa pele...
Conquistamos amigos sem conta, espalhados pelo mundo afora: os que já morreram permanecem em nossos corações. Um leão no comando, cabeça alva, Jorge Amado se despede hoje de seu acervo de quase 60 anos de presença literária. Material acumulado no dia-a-dia, guardado com carinho – muitas vezes escondido da sanha policial em invadir nossa casa – riqueza incomensurável, herança que ele oferece em vida à sua amada Bahia, a seu povo. De hoje em diante, esse acervo estará à disposição dos estudiosos, no mais belo casarão do Largo do Pelourinho, cenário de suas histórias, universo de seus personagens, onde funcionará a partir de amanhã, 7 de março de 1987 a Fundação Casa Jorge Amado.
ZÉLIA GATTAI
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