sexta-feira, 26 de janeiro de 2018

DISCURSO DE POSSE DE LUCCHESI



Posso dizer, como Nélida Piñon, que sou um brasileiro recente. Nasci anfíbio. Tenho duas línguas e dois corações. Metade adesão. Metade abandono. Trégua feroz. E surda guerra. Um solo a duas vozes. O violino e o contrabaixo. E já não sei qual dessas vozes melhor me pronuncia.  Um verso de Luzi e outro de Drummond. O Maracatu de Mignone e os crisântemos de Puccini.

Duas pátrias e duas línguas.

A primeira veio dos olhos castanho-claros de minha mãe, onde sorvi a língua toscana: a melodia sinuosa das colinas que impedem que os de Lucca vejam os de Pisa, como disse Dante; o aroma puríssimo do azeite das terras de Massarosa e o céu em chamas, à beira do crepúsculo; verbos e palavras antigas, como acquaio, augello, polla, que se entrelaçam com a vegetação do lago de Massaciuccoli; a altura das vogais, como a da torre da igreja de Pieve a Elici, onde me perco num sonho de ascensão. Minha memória absorve passagens da Divina comédia, como a de Paolo e Francesca:

“Quando leggemmo il disïato riso
esser basciato da cotanto amante,
questi, che mai da me non fia diviso,

la bocca mi basciò tutto tremante.
Galeotto fu 'l libro e chi lo scrisse:
quel giorno più non vi leggemmo avante.

Mentre che l'uno spirto questo disse,
l'altro piangëa; sì che di pietade
io venni men così com' io morisse.
E caddi come corpo morto cade”.

A outra língua é a portuguesa, a que aprendi a amar duas vezes, como brasileiro e filho de italianos. Língua de matriz antiga, de ínvios mares e sertões bravios, do Esmeraldo de situ orbis; subúrbios da Leopoldina e praias antigas, como Icaraí, Adão e Eva, Jurujuba; língua de nações indígenas e africanas; língua de Vieira, contra as armas de Holanda; do magma de Guimarães Rosa; das tempestades que varrem a obra de Clarice;  do abismo em que flutua o delírio de Brás Cubas. Todos repercutem em meu destino de escritor. Como esquecer, afinal, a insuperável lição de Tétis?:

“Vês aqui a grande Máquina do Mundo,
etérea e elemental, que fabricada
assi foi do Saber, alto e profundo,
que é sem princípio e meta limitada.
Quem cerca em derredor este rotundo
globo e sua superfície tão limada,
Deus: mas o que é Deus ninguém o entende,
que a tanto o engenho humano não se estende”.

São estes os fantasmas que habitam minha nau peregrina. Vivo um atlântico de extremos. Naufrágio e calmaria. Destino e perdição. Qualquer coisa de intermédio que vai de mim para o outro. Da máquina do mundo ao amor de Francesca.  Donde essa paixão visceral por Dante e Camões. Sou como um duplo cercado de espelhos. Imagem perdida na Ilha dos Amores ou nas praias do Purgatório. Vasco e Virgílio. Afinal, amor meus, pondus meum. Meu amor é meu peso, como lemos nas Confissões. E quanto a mim, não tenho outra saída senão a de multiplicar por dois minha densidade rarefeita.

A cadeira quinze resgata o quociente parcial da soma desses duplos. O patrono é Gonçalves Dias e o fundador, Olavo Bilac. Quase um compêndio de dois séculos. Seguem-se Amadeu Amaral, Guilherme de Almeida, Odylo Costa Filho, dom Marcos Barbosa e o padre Fernando Bastos de Ávila. Modifico o verso de Dante, no Limbo, e, dessa cadeira, posso dizer, com modéstia e galhardia, que “io son settimo tra cotanto senno”.

Chego a Gonçalves Dias com oito anos de idade. O sortilégio de sua redondilha foi a escola onde matriculei meus versos da infância.  Da “Loa da Princeza Sancta”  sublinho essa passagem:

“Quando o Rey tinha-los juntos
Começava a discursar:

‘Os iffantes já são homens,
Vou-me ás terras d’alem-mar
Armal-os hy cavalleiros;
Deos senhor m’ha de ajudar’”.

Decidi-me pelas terras de além-mar. Como um vassalo da língua portuguesa. Já, com Olavo Bilac, guardo a poesia do espaço e das estrelas, com que pretendo encerrar o discurso desta noite. Se com Amadeu Amaral partilho o amor pelo poeta de Florença, com Guilherme de Almeida abraço a coincidência dos opostos, em que corre a poesia, varada de rigor e paixão. De  Odylo Costa Filho sinto o acento das coisas que deixaram de ser, com algum lirismo bandeiriano. E de dom Marcos Barbosa evoco as crônicas matutinas da rádio Jornal do Brasil e a refinada tradução dos Salmos, que me faz pensar em Merton e Claudel.  Cada qual mereceria longas digressões, pontuadas pelo mérito e pela biodiversidade de suas respectivas aventuras intelectuais. Decido-me, no entanto, e em consonância com o regimento da Casa, a tecer o elogio do padre Ávila, não sem antes referir as razões que dele me aproximam.

Desde menino eu me senti convocado pela distância, medida em quilohertz ou anos-luz.  Com o rádio de ondas curtas, eu pescava no oceano da estática, as estações dos quatro continentes. E o pendor para as línguas se fortificou naquela babel eletrônica. Com o telescópio, tive a emoção de contemplar as luas de Júpiter e os anéis de Saturno. Tudo era motivo de júbilo e de espanto.  Mas foi com a Divina comédia que a paixão da distância, ou a nostalgia do mais, adquiriu uma terra definitiva, essencialmente literária. Terceira pátria. Ou margem. A filosofia da Idade Média marcou o início da demanda rumo ao Todo Diferente. Eu mergulhava no oceano da Suma teológica, nos tratados de Bernardo e  Boaventura,  Anselmo e  Agostinho. A teologia era condição necessária, embora não suficiente, para adentrar a selva claro-escura da Comédia.

Aos poucos, e na faixa dos dezesseis anos, comecei a migrar para os contrafortes da teologia moderna, escalados nas férias de verão, em planos diversos e alturas: a teologia da morte de Deus, a teologia da cruz, da libertação e da esperança. Hoje me volto aos estudos da mística comparada e ao diálogo interreligioso, percurso que me levou ao amigo Faustino Teixeira, poeta do diálogo, como também a Leonardo Boff, Arturo Paoli e ao caríssimo Frei Betto. Não posso esquecer do jesuíta Paolo dall’Oglio, do mosteiro de Deir Mar Musa al-Habashi, no deserto da Síria, de que guardo a imagem tremenda do Alcorão: Deus está mais próximo do que a veia jugular ( وَنَحْنُ أَقْرَبُ إِلَيْهِ مِنْ حَبْلِ الْوَرِيدِ).

Nasci na tradição católica e mediterrânea, dos santos e dos místicos, no encontro da cultura erudita com as formas populares da devoção, fascinado pelo mistério do Rosto.  Vivo com adesão as páginas de Emmanuel Lévinas. E sob a influência de Massignon, visitei o morro do Horto, com os romeiros do padre Cícero, a mesquita de al-Ualid, em Damasco, o mosteiro de Sfânta Ana, em Orşova, as sinagogas de Jerusalém, cidade  três  vezes santa, além de Shirâz e Isfahân, o santuário de Aparecida e  a  catedral de São Pedro. Nessas estações, sondo o tremendum et fascinans  dos filhos de Noé ou de Abraão. Sou tomado pelo canto 33 do Paraíso de Dante, quando o amor se transforma em luz intelectual e avança Universo adentro. Sondo a luz tabórica da mística ortodoxa (a таборский свет) e o sabor do Cântico de Salomão, do mel et lac sub lingua tua, na sensação das coisas primordiais. Nesse percurso, busquei a poesia do diálogo, a terra sacra da Diferença.

Precisei daqueles estudos para me acercar do Inferno, Purgatório e Paraíso. Ao fim e ao cabo, fui tomado pela poesia do Empíreo, onde se plasma o desafio de pronunciar o inefável e de traduzir o que deixa a esfera do silêncio. Procuro a dimensão da lírica na interface com a mística, para atingir a segunda navegação platônica, a poesia da poesia, para correr melhores águas, sob o signo do inefável, da palavra áspera e sutil, segundo os referentes da treva superluminosa, de Dionísio Areopagita.

Importa sublinhar a densidade do diálogo, mesmo que se busque uma mística seca, desprovida de Deus ou de transcendência pessoal.  Em todo o caso, o princípio mínimo da ética da leitura consiste na suspensão da descrença (suspension of disbelief), de modo que, como leitor, creio no céu descrito por Ptolomeu, na função dos motores celestes e no motivo das manchas da Lua. A literatura é o ágon do saber ecumênico, que me leva à cova de Montesinos, com dom Quixote, ao mundo da Lua, com o paladino Astolfo, ou aos sertões, onde refulge o rosto luminoso de Diadorim.

A literatura e o rosto!

Minha suspensão da descrença aumentou após a grande tempestade de areia, que me envolveu em 2009 na Arábia Saudita. Uma nuvem de trezentos metros de altura, com velocidade aproximada de trinta nós. Meus olhos se tornaram outros. Algo excessivos, talvez. Marcados pela urgência de uma nova educação dos sentidos, como queria Dante na viagem para Beatriz.

Chego ao padre Ávila, portanto, levado pelas mãos dessas afinidades eletivas. Sem descurar da cultura laica, absorvo essas questões de fundo sub specie intellectualis.

Valho-me das memórias de Fernando, A alma de um padre, de leve sotaque  agostiniano, ao indagar a voragem da memória e sua  intensa prospecção:

“Sinto-me descer como que por um poço vazio que, de repente, se abre para uma grande nave subterrânea [...] Esses espaços interiores são como galerias noturnas iluminadas apenas pelo meu próprio olhar.”

E, contudo, o livro não se mostra varado por uma áspera beleza, como Papini, dramático e noturno, como no admirável O nariz do morto, de Antonio Carlos Villaça, ou ainda harmonioso e  ensolarado, como em  Minha formação, de Joaquim Nabuco.  É, antes de tudo, um livro apolíneo,  com ligeiras encrespações, que se dissolvem, tão logo se desvelam, na superfície do fluxo narrativo. Um livro quase sereno: a história de uma alma, o prefácio de uma segunda vida, interminável, perfeita e simultânea, conforme a expressão de Boécio.

Mas voltemos à Terra,  para a  história de uma alma, sim, mas dentro de um corpo, o software e o hardware, como propôs Umberto Eco, não sem uma ponta de ironia,  ao  amigo e cardeal Martini.

Filho de José Bastos de Ávila e de Cinyra Muniz Freire, Fernando nasceu na cidade do Rio de Janeiro, em 17 de março de 1918, numa Copacabana, hoje, impensável:

“A rua em que nasci era tranquila, com casas esparsas que tinham jardins e quintais com árvores de abio, cambucá, abricó, sapoti. Grandes terrenos baldios separavam as residências e nas minhas incursões nunca ia além do traçado da rua Barata Ribeiro, onde começava o deserto residencial até a rua Tonelero.” 

Uma percepção da natureza avulta em seu diapasão lírico, que o acompanhará, sem interrupção, até os últimos dias de vida, quando completou a viagem de volta para a última Roma, em seis de novembro de 2010.  Noventa e dois anos de vida – setenta e cinco dos quais dedicados ao sacerdócio, sem dispensar os embates da História com a Metafísica,  all’eterno dal tempo, na dialética de Dante.

Fernando completou o antigo primário na escola Sarmiento, de cujo passado restaram flashes de sonhos e folguedos infantis. O colégio Santo Inácio veio depois, trazendo-lhe os germens impressentidos da vocação.

Em 1930, Fernando ingressou na Escola Apostólica de Nova Friburgo,    partilhando a  mesma emoção de Sérgio, às portas de O ateneu:

“Na tarde daquele dia, minha mãe me levou à estação de Mauá. Quando da plataforma do trem, eu a vi sumindo, desatei a chorar. Na inocência de meus 11 anos, talvez eu pressentisse  que um novo destino começava para mim”.

Segue-se um período de formação, em que permanece afastado da família e sob árdua disciplina, livre, contudo, de américos e aristarcos  da obra de Raul Pompéia, que lhe toldassem o delicado horizonte em que havia de crescer.

O noviciado veio cinco anos depois, ainda sob o guarda-chuva  da  ratio studiorum, dos últimos raios de uma escolástica crepuscular, ávida de coligir etiquetas e aplicá-las ao coração de universais e transcendentais, fora dos rumores do mundo, alcançado melhor a priori, no manejo de uma lógica sem nervos, em território de escombros, por onde vagam esquálidos fantasmas.

Mais que censurar uma razão desenganada (antes do socorro de Garrigou-Lagrange ou de Jolivet), tratava-se de  levar a cabo uma  ansiada quebra de paradigma, que se fazia urgente para alcançar, de modo frontal, os desafios de um mundo em conflito e tensões ideológicas. A philosophia perennis, como queriam Farges e Barbedette, apostilando o alto pensamento de São Tomás, dispunha da mesma consistência de uma bolha de sabão, não passando de um raso anteparo, que pretendia isolar, ou antes, proteger o sujeito do contágio dos modernos, tal como vemos em Mundos mortos, de Octavio de Faria, na figura complexa e, até certo ponto, fascinante, do padre Luís, afogado, muito embora, nas águas mornas de um labirinto pietista.

Fernando recebe sólida formação clássica, de que muito se vale na parte mais espessa de sua obra. Soube reunir dois mundos que se pensavam irredutíveis. E, de ambos auferiu visadas abertas.  Não só não se fechou para a modernidade, como decidiu arrostar as demandas sociais e filosóficas da era dos extremos, para tomar a fórmula de Hobsbawn.

Fernando viajou em 1945 para Roma, cidade declarada aberta, como no filme de Rossellini, e por onde passavam, entre as ruínas morais e políticas do Pós-Guerra, não apenas Anna Magnani e Aldo Fabrizi, mas, sobretudo, para o nosso homenageado, Giorgio La Pira e Giuseppe Dossetti. No tempo em que o futuro acenava com uma longa duração, Fernando terminou o mestrado em Filosofia e Teologia na cinco vezes centenária Universidade Gregoriana, di quella Roma onde Cristo è romano, sobre a qual, aliás, escreveu Affonso Arinos páginas gloriosas.

Sentia por Roma uma atração plural, como humanista e  homem da Igreja, a Roma de  Gibbon e de von Pastor, a cidade de César e do Papa, as antiqualhas do fórum e o altar de Bernini:  “Uma das coisas que mais me deliciava em Roma era subir até a Igreja de Santa Maria in Ara Coeli”. E completa: “deslumbrava-me a Roma clássica [...] uma verdadeira emoção em ver com meus olhos o cenário onde ocorreram os grandes lances da história.”

Vencido o abismo da vocação, foi ordenado sacerdote em 1948, quando sopravam os ventos da teologia de  Chenu, Congar, Rahner e de Lubac, arautos do Concílio Vaticano II, que a Igreja não conseguiu  de todo absorver, criando, em muitas partes, uma certa eclesiologia do impasse.

Como sacerdote, Fernando defendeu sua tese de doutorado, L’immigaration au Brésil, junto à Faculdade de Ciências Políticas e Sociais da Universidade de Lovaina, de cujo percurso textual emerge uma vasta saudade do presente, bem como uma premência irremovível dos problemas de nosso país.  Da riqueza dos estudos na Bélgica, aprofundados na França, responde a Introdução à sociologia, compêndio que formou toda uma geração de cientistas nos anos sessenta e setenta. Aflorava no espírito de Fernando o interesse crescente pelo social, na ótica dos mais pobres, dos anawim, dos que vagam nos livros do Antigo Testamento e se multiplicam na periferia do capitalismo.

A publicação do Manifesto Solidarista respondia pelos anseios de mudança, ao mesmo tempo em que pensava uma  alternativa aos projetos então considerados radicais. De base estritamente reformista, o programa tomou distância do conflito entre Capital e Trabalho, ou das teses de livre mercado, onde predomina a invisible hand, colocando-se o drama da desigualdade social entre parênteses, segundo as tendências  conservadoras daquele período. 

O manifesto de Fernando constitui uma declaração de princípios, que, se hoje pode soar tímida, não esconde a nobreza de propósitos, na defesa das liberdades individuais,  em conjunção com a doutrina social da Igreja, que  começava a ocupar  boa parte de sua redação. Assim, ao redigir Antes de Marx: as raízes do humanismo cristão, Fernando cobrava do autor de  Das Kapital  uma suposta dívida contraída com os  pensadores católicos, que o precederam:

“A crítica do capitalismo como sistema global já se consumara, antes da publicação do Manifesto do Partido Comunista, em 1848. Todos os pontos vulneráveis do modelo tinham sido denunciados com clareza inequívoca, pelo catolicismo social. Muitos elementos integrados por Marx em sua síntese, como dados originais, de fato ele os encontrou elaborados numa corrente de pensamento que inundara o espaço cultural europeu. Antes de Marx, pensadores cristãos já conheciam o mecanismo da plus-valia e tinham descoberto, no processo espoliador do capitalismo, a causa secreta da questão social.”

Mesmo que bem comprovadas tais aproximações, nenhuma delas poderá embargar a energia e a imaginação dialética de Marx, eliminando-lhe a espessura filosófica e a densidade, que faltou, com efeito,  aos que o teriam precedido, no plano rigoroso de uma  elaboração sistêmica, operando apenas com uma semântica de conceito nômades e dispersos. E, no entanto, o estudo se revela singular, por trazer ao debate como que um grande arquipélago, senão de todo esquecido, ao menos raramente visitado. 

Como homem do diálogo, Fernando convocou a sociologia para examinar as cordas vocais do sujeito teológico. E tomou distância, tanto da perspectiva de Mannheim (do Standortsgebundenheit des Denkers), quanto do marxismo mecânico, segundo o qual a literatura não passa de falsa consciência, e a fortiori, a teologia, não passando de uma desprezível monstruosidade. O livro Fé cristã e compromisso social, escrito em parceria com Pierre Bigo, releva os condicionantes da produção teológica:

“Ainda que a teologia seja uma só, existem modos diversos de realizar a tarefa teológica. A razão pela qual se constrói a teologia é sempre uma razão histórica. O teólogo não é um ser errático, desarraigado da realidade. Ele participa dos condicionamentos de seu tempo tanto materiais como espirituais. A elaboração teológica é sempre afetada pelo lugar social que ocupa o teólogo dentro da Igreja e dentro da sociedade”.

De acordo com essa hermenêutica, aponta-se para a relação delicada, entre o núcleo duro da teologia clássica e as nascentes teologias, que desejo aqui chamar de regionais. Todas marcadas pela crítica do sujeito, por uma demanda de novos olhares.

Parece-me oportuno abordar o sentimento teológico, por onde se espraia a obra do padre Ávila, como parte de um diálogo radial ou multidisciplinar, que lhe é caro. Sublinho, para tanto, um episódio de sua infância, agora na casa de Botafogo, quando subia a pedreira, desde o quintal: “até um alto patamar de onde descortinava quase todo o bairro. Ali, do alto, eu me perdia a contemplar aquele horizonte de casas simples e pequenos jardins [,] as tardes de São João com os deslumbrantes ocasos que palpitavam com as dezenas de lanterninhas dos balões”.

Da precisão dessa reminiscência, desprende-se um lirismo das alturas. Como se inaugurasse o colóquio da misteriosa transparência do mundo, sem tirar daquele episódio a trama social que o circunscreve, nas festas de São João, na pedreira dos fundos da casa, diante de cujos  detalhes atingimos uma  chave de leitura que explica algo daquele menino, sem esgotar, contudo, o sentimento de uma tarde antiga.

Feita a ressalva de ordem sociológica, urge perscrutar a transparência em que flutuam aqueles balões peregrinos.

Subir e descer, como nas festas de São João, os mistérios da teologia, eis o que fazem os estudiosos, quando optam pela forma alta ou baixa da cristologia, partindo do Verbo ou de Jesus, sem perder de vista o espaço de transição das coisas terrenas e celestes, anjos e  estrelas,  tempo e  eternidade, refletidos  no espelho da criação,  no  meio intradivino.

Para o teólogo Gisbert Greshake, não se deve perder a ideia da criação no seio trinitário, a partir do Verbo, que responde pela gênese do Universo. Seria preciso ultrapassar o  recorte excessivamente biográfico, uma bela, embora limitada, expressão jesuânica, que dilui seu alcance universal.

Todo um cuidado para não raptar a profusa dimensão do Logos em Jesus.  Os pensadores cristãos da primeira década  deste  século tendem  a referendar a ideia de um Cristo cósmico, mediante uma teologia dupla,  alta e baixa, positiva e negativa, que  se comove com o rosto humano de Jesus no mistério trinitário, tal como disse Dante: “or fu sì fatta la sembianza vostra!”.

Trata-se de uma forma de migração do imanente  para o transcendente, suprimindo-se o abismo feroz da exegese que os separou durante séculos, com uma  barreira  de todo intransponível. A categoria da transparência surge como forma de articular a passagem entre esses dois reinos, à primeira vista irredutíveis. A transparência não é um ponto cego, mas um olhar transitivo.

Diante de uma possível história da transparência, Teilhard de Chardin mereceria um capítulo a parte, ao definir o problema nesses termos:

“Como essas matérias translúcidas que ficam todas iluminadas por um raio  de luz que nelas se encerra, o mundo, para o místico cristão, aparece banhado da luz interna que lhe intensifica  o relevo, a estrutura e as profundezas.”

Tese fundamental para ampliar a tensão atópica da imanência com a  transcendência,  e, sobretudo, para combater a negação do mundo, a morte dos sentidos, que, desde o Fédon, inauguram uma tradição, dentro do Ocidente, tornada mais aguda com Plotino, na desleitura do Parmênides.

A transparência é o centro da visão da natureza, que inspira o  padre Ávila, ideia que o leva a atingir as partes dispersas do texto do mundo, feito de múltiplas camadas, segundo a tradicional exegese cristã, como quando, mutatis mutandis,  Dante  se vale de um  repertório de formas análogas às da Terra, com as quais elabora o terreno evanescente  do Paraíso. A transparência é um dos maiores trunfos da poesia dantesca, a que lhe facultou diluir o impacto de uma elevada taxa de abstração, que pudesse  anuviar a  transparente beleza da última Cantiga.

O padre Ávila insiste naquele modo diáfano de interpretar o livro do mundo, para além de balões peregrinos e lanterninhas, quando aborda, por exemplo,  um variado acervo de temas ligados à natureza, como no elogio da palmeira: “admirável sucesso arquitetônico da natureza. De tronco tão longo e duro, como é que chegam, com tanta perfeição, até a flecha no alto as mensagens enviadas pelas raízes obscuras?! Quando as vejo alinhadas em fila dupla, elas me lembram a coluna perfeita de uma catedral invisível a céu aberto”.

Eis um condensado de imagens, em que a palmeira traduz a um só tempo sua condição vegetal, ao lado da vertente arquitetônica e da figura teológica. A transparência desenha uma superfície metafórica, ao longo da qual se projeta uma igreja invisível, marcada por dois planos interagentes,  das raízes obscuras à pura altitude, com a misteriosa flecha ascensional, teilhardiana, a celebrar os mistérios da criação, como nas sinfonias de Olivier Messiaen, nas vozes dos pássaros imateriais, que também voam nos versos de Hopkins e Jorge de Lima.

A dimensão da natureza ameaçada levou estudiosos das mais diversas áreas ao conceito da transparência.  A ela se referem essencialmente os teólogos da libertação, que entendem o planeta como protagonista de um drama árduo, da Terra crucificada,  como Cristo, no calvário dos rios e dos mares poluídos, junto aos pobres de todos os quadrantes, com os quais o  planeta se identifica, dos que esperam e forjam a libertação. Para esses teólogos, o pecado social ou estrutural levou a sora nostra madre terra aos limites da sobrevivência, no rastro de  uma  constelação pós-capitalista.

Em paralelo, Hans Küng esboça um projeto ambicioso, de uma ética planetária, vivida nos extremos da modernidade, como forma de criar um mundo em diálogo, sem elidir o acervo das diferenças que unem os povos.

Desde os anos de 1990, o padre Ávila condena a corrosão do caráter no mundo capitalista, quase que ao lado de Richard Senett, chamando a atenção, no livro Meio ambiente, para o fato de que a Igreja sempre defendera a natureza, a partir de um ethos difuso, longe das escolhas de um museu natural ou de um quadro redutor de mera preservação. A Igreja, segundo Fernando, “já alertara para a exaustão dos modelos quantitativos, já denunciara o egoísmo dos grupos e nações, já fizera apelos patéticos em favor da solidariedade”.

Um quadro terrível, é bem verdade, que não dilui o domínio da espera, cuja dicção ressurge, mais uma vez, na coletânea de ensaios Folhas de outono, onde Fernando sublinha três tendências que parecem alvissareiras: a consolidação da dignidade da pessoa humana, a   compreensão de uma ampla  interdependência dos povos e a  convicção do valor inestimável da ecologia. Seguindo de perto as intuições de Teilhard de Chardin, ele sublinha as  idéias gerais de O fenômeno humano. O homem não é o fim da evolução, mas a flecha ascendente de um processo que se aterma no ponto Omega, na  supercentração de tudo em Deus, de acordo com a primeira epístola de São Paulo aos Coríntios – εν πάσι  πάντα  θεόϛ,  a nostalgia do transparente, na comunhão do mundo com Deus.

A esfera da consciência é a razão primeira da gênese humana. Para Teilhard, “hoje mesmo, para qualquer marciano capaz de analisar tanto psíquica como fisicamente as radiações siderais, a primeira característica de nosso planeta seria certamente o fato de este lhe aparecer não com o azul dos seus mares ou com o verde de suas florestas – mas fosforescente de Pensamento”.

Uma espécie de salto sem precedentes da natureza, um mistério irrevogável. E prossegue:

“O que pode haver de mais revelador para a nossa ciência moderna é saber que todo o precioso, todo o ativo, todo o progressivo originariamente contidos no retalho cósmico de onde saiu o nosso mundo, se acha, agora concentrado na ‘coroa’ de uma Noosfera.” 

Essa grande poética da vida, com sua feição, ao mesmo tempo severa e apaixonada,  repousa no conceito de finalidade, que tanto aborreceu Jacques Monod,  em   Le hasard et la nécessité, igualmente  revisto, por sua vez,  e criticado mais tarde por Ilya Prigogine, com A nova aliança.  Mas é assunto que levaria longe demais. Importa  fixar a poesia da vida, em Teilhard e em nosso homenageado. 

Ainda em Folhas de outono, Fernando sublinha a causa final da antropogênese, em Teilhard, destinada ao nascimento de Cristo “o mais prodigioso evento na história do cosmos”, que prepara “a realização  progressiva do plano do amor infinito de um Deus, que é a própria transcendência”.

O resumo teilhardiano do padre Ávila, acerca da plenitude dos tempos, encerra-se com a expressão do amor, que move o sol e as demais estrelas. E lembro com Olavo Bilac:

“Quem poderá contar tantas estrelas?
Toda a abóbada está iluminada:
E o olhar se perde e cansa-se de vê-las.

Surgem novas estrelas imprevistas...
Inda outras mais despontam...
Mas acima das últimas que avistas,
Há milhões e milhões que não se contam...”

Milhões de estrelas, que na cosmologia atual revelam, no desvio para o vermelho, a velocidade de fuga das galáxias, que se deslocam entre nuvens de aglomerados estelares, segundo o modelo atual do Universo. Ou, mais propriamente, do Multiverso, com seu volume de infinitos, pontes de Einstein-Rosen,  viagens ao passado,  de acordo com os cálculos de Kurt Gödel, nas curvas de tempo fechado.

Um cosmos regido pela teoria das supercordas, que promove o diálogo possível e desafiador entre a relatividade geral e a mecânica quântica, como no livro do físico Brian Greene, The hidden reality.  Hoje, o maior fantasma da física não é Deus, mas uma certa desconfiança,  em níveis bem demarcados,  da  matemática.

Feito este comentário a latere, sabemos quanto é preciso abraçar uma economia de pressupostos auto-sustentáveis para que o planeta não se reduza, no terceiro milênio, ou bem antes disso, a um estranho fragmento sideral, como no desenho “Futurama”,  de Matt Groening, em que os animais, que hoje conhecemos, convivem com espécies híbridas, mutantes e extraterrenas, ao lado de uma bizarra população de robôs,  movidos a etanol.

Para pensar a vida no planeta, deve-se olhar para o céu, como fez Bilac, na contemplação da Via Láctea que  “como um pálio aberto cintila.” E, ainda, nesta senda de esperança – na trama de uma ecologia  cósmica –  sigo o altíssimo poema de Joaquim Cardozo, na última viagem do trem subindo ao céu, em sua propensão para o infinito, sob a chuva torrencial de zeros. A viagem segue

“no âmago desse espaço, último e total
Sem métrica e metria, sem ordem física,
Sem orientação e sem origem;
-No centro dos centos, do anúncio de todos os possíveis,
Erguido em Glória, em Majestade, em Grandeza,
O acontecimento Branco
Divino?Eterno.”

Na luz difusa da Terra e da poesia, o mistério abraça o imponderável. E como Dante, frente à beleza de Beatriz, devemos realizar uma espécie de salto, à beira de um  precipício descontínuo -  saltar lo sacrato poema.

Para não encompridar a viagem, no trem de que vos faço passageiros, informo que chegamos ao destino.

O modo generoso com que fui recebido nesta Casa me emociona. Não pelos 34 dos 38 votos possíveis, ou pelo fato de entrar aos 47 anos. Mais que os números, que se apequenam diante “desta abóboda infinita”, comove-me o afeto que venho recebendo. Tenho pouco a oferecer. Não passo de um leitor voraz.  Sempre curioso. E em tudo independente.  Com saudades de Machado e do futuro. Meu lema para o mundo dos livros e para as formas do diálogo é o de Alfieri: io volli, e volli sempre, e fortissimamente volli.  Não me inclino a distinguir a idade ou geração de meus interlocutores.  O pensamento habita o tempo  aion.  Assim, sou o acadêmico mais velho desta Casa, ao passo que Cleonice Berardinelli ou Evaristo de Morais Filho são  os mais jovens.  Na “minha faixa etária” aproximo Lygia e Ana Maria, Cony e Rouanet.

Desejo evocar Evandro Lins e Silva, uma das figuras de proa da história do Brasil, que há mais de uma década lançou meu nome para a ABL. Lembro igualmente de três acadêmicos que me conhecem há mais de vinte anos. Nélida Piñon: com sua inteligência meridiana e generosa, a pentear-me os cabelos, desalinhados pelo regime de ventos que sopram em A república dos sonhos. Sua leitura confirmou o estatuto de duas línguas e  uma amálgama superior; Eduardo Portella: na Biblioteca Nacional ou no encontro, tramado pelo acaso, na porta da livraria  La Hune,  num fim de tarde em Paris. Declaro-me aqui atento leitor de sua obra e nutro a esperança de que me considere amigo, dentro e fora da página; e para não aumentar a vertigem da lista, termino com Tarcísio Padilha: homem de absoluta integridade, da família dos raros pensadores, cuja visão de mundo coincide com a própria vida. O princípio-esperança o representa de forma inadiável.

Não posso não assinalar, no livro imaterial das grandes amizades, meu reconhecimento a Luciana Villas-Boas e Sérgio Machado, pela cumplicidade refinada, constante e generosa.   Aos amigos desta noite, de tantas línguas, países, religiões,  agradeço comovido. Saúdo os funcionários da Biblioteca Nacional, de que destaco o trabalho admirável de Célia Portella.  Cumprimento, em nome dos que trabalham na  Academia Brasileira de Letras, nossa querida dona Carmen.

Termino com um poema de Meridiano celeste & bestiário, através do qual declaro parte de minhas dívidas, nomeando meus amáveis credores: Constança Hertz, a irmã Rosalie Baptista, Elizabeth Paulon, Ana Miranda e Sauro Lunardini.  Não me esqueço da memória de Nise da Silveira. E, particularmente, de  Quintilia Lorenzoni, Egidio Lucchesi e Elena Dati:

“Obrigado
céu em chamas
infância melancolia
obrigado
gerânios antúrios
quintais infinitos
praias do Leme e Arpoador
obrigado
rádio relógio
movendo meus anseios
e eu não dando pelas horas
(depois do sol
quem ilumina seu lar
é a galeria silvestre
obrigado por tarefa
tão sublime
essa de iluminar
todas as casas)
obrigado
parque xangai
largo da penha dezenove
obrigado
tardes e madrugadas
bazares especiarias
amores e devaneios
obrigado
línguas e povos
de todos os quadrantes
objetos do céu profundo
anéis de Saturno
crateras da Lua
e espinhas no rosto adolescente
obrigado
febres pela herança
de torpor e imprecisão
que deixais ao partir
obrigado
Vieira e os dias
que passei guardando
as armas
de Portugal contra as de Holanda
obrigado
sonhos noturnos
igrejas barrocas e mesquitas
primeiras orações e terço azul escuro
obrigado
cães gatos  passarinhos
que por mim passaram
e me fizeram mais sutil
obrigado
inocência que me resta
cinismo que me atenta
obrigado sangue
difamação joelhos feridos
ao cair da  bicicleta
e de há muito cicatrizados
desertos e façanhas
breves e bizarras
mas que me são
e me atravessam
obrigado
amigos
não tenho palavras e silêncios
espadas flamejantes
e mares de calor
muito obrigado
obrigado de verdade
Marco Lucchesi
agradecido”




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