Busto de Veríssimo de Melo |
Na gaveta dos papéis desarrumados
encontrei esta semana, num envelopão de papel madeira já com as manchas do
tempo, um recorte do jornal “A União”, de João Pessoa, página inteira, com uma
matéria assinada por Veríssimo de Melo. Saiu na capa do “Segundo Caderno”,
edição de 8 maio de 1987, com o título “O folclore de Cascudo”. Leitura deliciosa, como se leitor estivesse
ouvindo uma conversa solta dos dois grandes folcloristas, excelentes
conversadores, amigos e parceiros, numa mesa de bar, na Peixada da Comadre, ou
mesmo na casa de um deles.
Para o deleite do leitor transcrevo
alguns trechos da matéria começando pelo começo, Vivi escrevendo assim:
- Luís da Câmara Cascudo era homem
quotidianadamente bem-humorado. Sempre o encontrava trabalhando, escrevendo à
máquina, quando não recebia visitas de admiradores e amigos inumeráveis.
Cascudo era mestre também na arte de conversar. Não havia assunto, no plano da
cultura, que desconhecesse. Falava e deixava a gente falar. A sua alegria
interior era decorrência de sua cultura, de sua erudição. Muitas vezes também o
surpreendia lendo, na rede, fumando seu charuto. Certa manhã, entrando no
quarto dele, encontrei-o na rede, com um grande travesseiro nas costas; lendo.
Embaixo estava enorme bacia, o que estranhei. Ao sair, perguntei o que
significava aquela bacia. Seria algum ritual folclórico? – indaguei. Ele deu a
resposta adequada ao curioso: “Jumento – disse ele – como é que poderia acertar
num cinzeiro deste tamanho, me balançando na rede e lendo?” Era cinzeiro
gigantesco... A seguir, outras “pérolas do humor de Cascudo”.
- Nilo Pereira foi outro amigo
diletíssimo de Cascudo. A ele, como prova de amizade, dedicou seu livro
“Literatura Oral”, um dos mais importantes. Nos últimos anos, Nilo Pereira
sempre vinha a Natal visitar o Mestre Cascudo – a quem tratava por Berbelho.
Assistia muitos encontros dos dois. Ocorriam coisas e gestos inacreditáveis.
Basta dizer que a maior prova de estima de Cascudo por Nilo Pereira se
manifestava através de um ponta-pé na canela... Nilo gritava como uma criança e
ficava manquejando vários minutos. Ou então Cascudo lhe atirava todos os
travesseiros que estivessem à mão. ”
- Quando trabalhava à tarde no jornal
“A REPÚBLICA”, que ficava vizinho à casa de Cascudo, observei muitas vezes o
Mestre saindo de casa em direção à Ribeira. Roupa escura, chapéu, bengala,
fumando enorme charuto. Ia a pé, falando com um e com outro pela calçada. Um
dia, me deu vontade de saber para onde se dirigia o Mestre. Acompanhei-o de
longe. Passou pela rua Dr. Barata, falando com muita gente. Finalmente, entrou
na Av. Tavares de Lira e sumiu num bar. Esperei um pouco e resolvi também
entrar no bar para falar com ele. Aproximei-me e observei a cena: estava
sentado à cabeceira de uma mesa larga, cercada por garçonetes e motoristas de
praça. Tomava uma cervejinha vespertina. Quando nos falamos, ele se justificou,
dizendo: “Pois é, meu filho, estou aqui estufando costumes! ” E estava. ”
- Homero Homem é autor de um belo
poema sobre Cascudo. Numa visita que fizemos aos dois ao Mestre – Homero
residente no Rio de Janeiro, há muitos anos – Cascudo saudou o poeta com esta
exclamação inusitada: “Meu filho, escreva um poema ruim, que eu quero ler! ”.
- A meu respeito, na presença de
amigos comuns, inventava coisas do Arco da Velha. A propósito de minha
conhecida magreza – antes muito mais acentuada do que hoje – ele me
caracterizou uma vez desta forma: “O corpo de Veríssimo é um pretexto para
guardar a alma”.
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