CARNAÚBA é um pequeno povoado do município de Acari.
Distendem-se numa planície extensa, olhos eternamente voltados para o Morro do
Cruzeiro, numa atitude estática de fé e numa homenagem reverente de devoção à
capelinha e a Cruz fincada na crista da elevação sertaneja.
Conheci-o, assim, numa manhã de sol esplêndido que
banhava os telhados chatos das casas humildes, invadindo-as num esbanjamento de
luz.
Antes, porém, já conhecia a terra e a gente através
dos pistões altissonantes, dos clarinetes ágeis, das trompas afinados, dos
saxofones sonoros que ali encontravam os melhores executores, berço ignorado de
músicos famosos, que saindo da terra pareciam trazer nos seus instrumentos as
modulações dos pássaros sertanejos.
ANTÔNIO PEDRO DANTAS TONHECA, professor de emoção e de
arte, a nascer no Rio Grande do Norte, só deveria mesmo nascer em Carnaúba. A
terra parece esconder um segredo, uma intuição misteriosa e única para os
filhos. Umas, dão poetas. Outras jornalistas. Algumas, juristas. Carnaúba, perdido no sertão seridoense, venido diante da altivez
do morro altaneiro, concede aos que nascem sob o seu céu amoroso e límpido, o
mistério das harmonias, sugestão dos ouvidos e encantamento das almas.
Escondida numa choupana pobre, nascia em 1871, mal
saído o sol, uma criança morena-clara, olhos castanhos, cabelos escassos
sorrindo para a Vida enquanto ela não lhe mostrava a amargura das lágrimas.
Esse menino, nascido à hora em que acordavam os
passarinhos, cresceu, ficou homem e foi Tonheca, simplesmente Tonheca,
guardando na existência humilde, a eternidade daquela hora porque sempre ela se
repetiu nas criações imortais de sua alma de artista.
Quantos dramas, porém, não se desenrolariam no palco
intimo de sua vida simples, ignorados por todos, longe de conhecer as
privações, as canseiras morais, as alegrias, as glórias, as desilusões, misturadas,
instante a instante numa continuidade desconcertante e trágica!
A obra é reflexo da Vida. E a obra de Tonheca, tão
farta que é difícil identifica-la, transmite-nos todas estas impressões
especialmente agora que a Morte cerrou os seus olhos para abri-los do outro
lado da Vida.
Ele experimentou, quando na mocidade, toda a
inquietação dos grandes espíritos. Percorreu vários Estados. Foi regente da
banda da Força Pública do Pará, do Regimento Policial da Paraíba, e no princípio
deste século, dirigiu a banda da Força Policial do nosso Estado.
Compositor exímio e fecundo, deixou espalhada uma
infinidade de composições, fazendo parte de várias companhias líricas, em
obediência ao seu destino que a pobreza nunca permitiu certo e definitivo.
Além disto, regeu diversas bandas de música no
interior, ensinando-lhes os primeiros acordes, ensaiando-as para a Vida quieta,
cial.
Nenhum compositor norte-rio-grandense, no desempenho
de tão relevante função social, pode até agora, supera-lo em número e em beleza
de composições. A Escola Normal da cidade deve guardar ainda 240 trabalhos de
sua autoria, apresentados quando de um concurso na cadeira de música daquele
estabelecimento.
Muitas venceram as nossas fronteiras. “Royal Cinema” e
“Delírio” tocam-se, hoje, como já foram tocadas na Alemanha.
Outras, igualmente bonitas, poderiam citar, “Melodia
do Bosque” é uma fantasia composta num jardim público, ao lado de uma igreja.
Traduz todo o encanto da paisagem, movimentada pelo valor humano, com as
pessoas que buscavam o templo na ânsia incontida da prece. Destaca o trinado
das aves madrugadoras, formando, em tudo, emoções contínuas e inesquecíveis.
Obrigada quase toda a solo de clarinete, tem uma cada
(final) dificílima, exigindo agilidade extrema. Executada pelo autor era uma joia
maravilhosa de sentimento, de arte e de música. “Boas festas” é uma grande
valsa, composta nas alegrias de um Natal festivo, mas com a lembrança
acentuadamente triste de um Natal pobre, sem brinquedos e sem conforto.
E, então, em “Delírio” e “Royal Cinema”, Tonheca
atingiu distâncias raras e obstinadas. Esta é a peça consagradora do seu nome,
evocando em acordes sonoros toda a tristeza da nossa raça, o farfalhar dos
nossos arvoredos, a tragédia das nossas terras, valsa cheia de gemidos, de
suspiros, de realidade e de vida.
Em todas elas, está a marca inconfundível do autor,
glória que pede glorificadores, nome obscuro que pede palmas e implora bênçãos.
ANTÔNIO PEDRO DANTAS TONHECA, nascido em 1871, passou
ao anonimato da morte a 7 de fevereiro de 1940, com 68 anos de idade.
Casou duas vezes, deixando desses matrimônios onze
filhos, um dos quais, por curiosa coincidência, é músico da Força Policial e
tem o nome do Pai.
Na sua terra, que mais lhe devia foi funcionário do Tesouro,
regente da banda do antigo Batalhão de Segurança, e por fim soldado-músico, sem patentes, senão as
dos aplausos públicos ao seu grande talento.
Vida, assim, tão simples, sem história e sem renome,
teria de ser vida pobre, de quase penúria, sem o descanso justificável pela
saúde precária e pela velhice impiedosa. Nunca passaria, pela uniformidade dos
seus detalhes, de simples caminhada para Morte calma e silenciosa.
Dias antes de fechar os olhos no sono derradeiro, vi
Tonheca, metido numa velha farda policial, olhos quase apagados, corpo
inclinado para o chão como se não pudesse mais com o peso da vida.
Fazia marcha diária que todos nós fazemos para o nosso
calvário, silencioso, triste, mas com a certeza de ter deixado o nome
imortalizado por um imperativo de arte, de coração e de inteligência.
A 7 de fevereiro, sem juntas médicas, sem corpos de
enfermeiros, sem aglomerações populares, morria calmamente. A última testemunha
de sua existência, por um simbolismo encantador, finou-se com ele: a vela humilde,
clarão de fé, grito aceso de esperança, pendente de suas mãos pálidas do ultimo
esforço.
ANTÔNIO PEDRO DANTAS TONHECA – De onde estiveres, não
maldigas nunca o teu destino incerto, a tua vida cheia de contrastes.
Contrastes da pobreza do teu lar com a riqueza do teu talento, da fecundidade
da tua alma com a ingratidão dos que te esqueceram. Ela humilde, que
conservando um nome foi, em tudo o retrato do teu berço que lembra palmas
agitadas para o céu, linha altaneira e invencível, vive achatada na planície,
olhando para cima com a timidez com que a criança contempla a montanha maciça e
elevada.
Abençoa-a assim, porque te concedeu aventura de
identificação com a terra, ela e tu, retrato único de uma mesma grandeza
cercada pelo esplendor de uma mesma luz.
Pesquisa
realizada pela Musicóloga e Acadêmica Leide Câmara, pela ocasião dos 150
anos de nascimento de Tonheca Dantas (1871-1940), Patrono da cadeira 33, e na ocasião dos 100 anos
de nascimento do Acadêmico Aluízio Alves ( 1921-2021), Sucessor 1 da cadeira 17 da ANRL.
Fonte: “A VOZ DA CASERNA” – Boletim mensal da
Sociedade Beneficente dos Sargentos da Força Policial do Estado do Rio Grande
do Norte, matéria publicada incompleta, no Boletim
Ano I - Junho de 1940 - Número I, Página 4
e no Ano II – Março de 1941 –
Número 3, Página 5, a matéria foi publicada completa.
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